Pasolini, Um Espírito Perturbador
por Bruno Ghetti (Valor Econômico - 24.out.2014)
Pasolini dirige Orson Welles, em "La Ricotta", um de seus melhores filmes |
No Dia de Finados de 1975, a Itália perdia uma de suas
personalidades mais fortes e polivalentes. Pier Paolo Pasolini, poeta, cineasta
e polemista, foi assassinado em circunstâncias obscuras nos arredores de Roma.
O corpo estava praticamente irreconhecível, mas nem a pior violência pôde calar
o que sua voz suave, quase feminina, já havia pronunciado àquela altura. Ainda
hoje, seus filmes e textos seguem atordoantes, perturbadores.
O espírito pasoliniano é reavivado com a mostra "Quando
o Cinema se Faz Poesia e Política de Seu Tempo", em cartaz no CCBB do Rio
e de São Paulo (em Brasília, a partir do dia 5). Obras como “Teorema” e “Salò”
serão exibidas em película, assim como longas de outros cineastas que dialogam
sua filmografia, como Glauber Rocha. No Rio, a mostra é complementada por uma
exposição de fotos do acervo particular de Pasolini. E em São Paulo, um debate
no dia 25 trará Ninetto Davoli, ator recorrente e ex-namorado do diretor.
O nome de Pasolini voltou com força também na Europa. O
último Festival de Veneza exibiu o longa “Pasolini”, de Abel Ferrara, sobre o
derradeiro dia de vida do italiano. E está em cartaz no museu
Martin-Gropius-Bau, em Berlim, a fabulosa exposição “Pasolini - Roma”, sobre a
relação do cineasta com a capital da Itália, onde criou a maior parte de sua
obra.
A princípio, a exposição deveria ser restrita a algumas
cidades europeias. “Mas seria formidável ir ao Brasil, onde seria muito atual
no que diz respeito às questões que levanta e ao pensamento de Pasolini”, diz o
francês Alain Bergala, um dos curadores da exposição. “O problema são as obras
de arte, que sempre precisam ser renegociadas. E os custos de transporte e
seguros. Mas não é impossível imaginar uma versão mais leve e adaptada a outro
país”, diz.
Especialista na obra de Pasolini, Bergala diz que o italiano
foi o último grande intelectual de seu país. “O estatuto dele enquanto
intelectual, ‘humanista’ e ‘universal’, não é mais possível hoje, pela
dispersão midiática das ideias. Há intelectuais cujas ideias são ativas enquanto
estão vivos, mas que se perdem com a história. Mas as obras de Pasolini são
ainda hoje válidas para compreender a situação italiana. Suas profecias se
revelaram acertadas”, diz o pesquisador.
Pasolini nasceu em Bolonha em 1922, mas cresceu na região de
Friuli, norte da Itália. Teve contato com o dialeto local e ganhou prêmios por
poemas em friulano. Com o pai, militar, nunca teve afinidade, mas havia algo de
incestuoso na sua excessiva proximidade com a mãe.
Homossexual assumido, em 1949, o poeta se envolvia em seu
primeiro escândalo: foi expulso do Partido Comunista após rumores de relações
com menores. Isso renderia o primeiro dos seus mais de 30 processos judiciais
(alguns, aliás, com imputação post mortem).
Totò e o diretor, no set de "Gaviões e Passarinhos" |
Após o escândalo, em 1950, o poeta se mudou com a mãe para
Roma. “Se não tivesse sido obrigado a deixar o Friuli, teria sido um outro
Pasolini. Ele não era movido por uma vontade provinciana de ‘conquistar’ Roma,
que era para ele o centro do poder, da língua nacional, do fascismo e tudo a
que ele queria fazer resistência. Ele vai ter com essa Roma não desejada uma
história passional”, explica Bergala. “Roma será, também, o modo de viver sua
sexualidade de forma livre, quase pagã.”
Pasolini conheceu bem o estilo de vida e a forma de pensar do
subproletariado do sul da Itália. Escreveu celebrados romances sobre ele, como
“Meninos da Vida”. Ao mesmo tempo, frequentava casas de bairros nobres de
intelectuais, como Alberto Moravia e Elsa Morante. Seu amplo conhecimento da
“alta” e da “baixa cultura” fez com que Federico Fellini o chamasse para
corroteirista de “Noites de Cabíria” (1957), sobre uma prostituta romana.
Mas Pasolini sentia que sua visão era traída quando levada
por outros cineastas às telas. Virou diretor em 1961, com “Accattone –
Desajuste Social”. Em um estilo realista, austero, criou uma estética muito
própria. Seu cinema ficou para sempre identificado com tipos “do povo” –
rapazes franzinos, idosos de pele calejada, homens desdentados. Pasolini dizia
que os usava como “partículas da realidade”, como o céu e o sol. “Seus filmes
envelheceram muito bem. Rever hoje ‘Accattone’ é uma experiência que fazemos
‘no presente’, não é só algo ‘cultural’”, diz Bergala.
Ler um texto ou ver um filme de Pasolini pode dar a impressão
de que ele era um sujeito rude, mas vê-lo falar em entrevistas, com sua
suavidade quase gentil, contradiz essa sensação. “Havia em Pasolini uma
violência intelectual, que era sua forma de ‘chacoalhar’ a Itália. Mas quem
conviveu com ele confirma que era o mais doce e paciente dos homens. Na TV,
quando confrontado com ‘inimigos’ ideológicos, sempre explicava suas posições,
com paciência. Não dá para imaginar um Pasolini fisicamente violento”, diz
Bergala.
Quando, em 1964, o cineasta fez um filme sobre Jesus, foi um
choque. A propaganda de “O Evangelho Segundo São Mateus” nos jornais atiçava a
curiosidade: “Um filme cristão feito por um comunista?”. Sim, era isso mesmo. A
esquerda celebrou o longa ao detectar traços marxistas no Jesus pasoliniano,
enquanto a Igreja Católica aprovou o filme por sua fidelidade bíblica. Mas alas
radicais tanto do comunismo como do catolicismo o rejeitaram; Pasolini passava
longe da unanimidade.
Terence Stamp, em cena de "Teorema" |
Entre poemas e textos teóricos sobre cinema, ainda nos anos
60, Pasolini usou histórias da antiguidade para criar alegorias sobre o
presente, em filmes como “Édipo Rei”. No meio da década, fez um documentário
sobre a sexualidade dos italianos, “Comizi d’Amore”, de valor antropológico.
Mas sua visão pessoal sobre o tema só viria nos anos 70, na “Trilogia da Vida”,
três filmes com histórias sexuais em tempos repressivos, mas com o sexo visto
como algo descontraído – uma saudável subversão.
Mas Pasolini rejeitou a Trilogia ao notar que talvez tivesse
fomentado a onda de filmes pornôs soft dos anos 70 (e que ele abominava). No
ano de sua morte, rodou seu filme mais polêmico, “Salò, ou os 120 Dias de
Sodoma”, adaptando Marquês de Sade para a Itália dos anos 40. O filme mostra
uma maratona de perversões, mas o sexo, desta vez, nada tem de salutar: é uma
metáfora sobre a dominação.
Pasolini morreu antes da estreia. Seu homicida confesso, o
garoto de programa Pino Pelosi, já deu versões distintas sobre o crime. O poeta
o havia levado para terem relações em uma praia, mas um grupo teria surgido e o
espancado. No filme de Ferrara, Pasolini morre após um ataque homofóbico. Mas
muitos, como Bergala, creem em crime político. “Diante de tantas evidências
acumuladas desde sua morte, é difícil pensar em mera homofobia. Pelosi não
estava só, Pasolini caiu em uma cilada. Havia muitos interessados em que aquela
voz fosse sufocada e parasse de denunciar tudo o que não ia bem na Itália”,
diz, referindo-se a setores da direita e da burguesia italianas.
A polícia da Itália ainda investiga o caso, mas Pasolini foi
absolvido enquanto artista pelo júri do tempo. “O aspecto polêmico de sua
recepção quando estreavam seus filmes cedeu lugar a uma avaliação mais objetiva
sobre sua importância. O problema hoje, aliás, é que ele é reconhecido ‘até
demais’, mesmo os seus inimigos. Virou uma espécie de ‘santo’ póstumo”, diz
Bergala. Pasolini certamente rejeitaria a própria “santidade”.
SEIS PASOLINIS IMPERDÍVEIS
- Accattone (Desajuste Social)
Estreia cinematográfica de
Pasolini, sobre um cafetão da periferia de Roma com sentimento de culpa (Franco
Citti, um de seus atores-fetiche)
- La Ricotta
Com Orson Welles no elenco, o
média-metragem mostra um sujeito que, após passar fome, se farta de quilos de
ricota – e morre de indigestão
- O Evangelho Segundo São
Mateus
Fiel ao texto bíblico, traz a
história do Cristo em estilo austero e realista, mostrando-o como um homem
doce, porém raivoso e enérgico
- Teorema
O ator mais “cool” da época,
Terence Stamp, vive um estranho que se aproxima de uma família burguesa,
deixando-a completamente desestabilizada
- Édipo Rei
Filmado no Marrocos, o mito
grego sobre a relação incestuosa entre mãe e filho tem certa inspiração na
própria ligação de Pasolini com sua mãe
- Salò, ou Os 120 Dias de
Sodoma
Inspirado em Sade, o filme mais escandaloso do diretor traz cenas pesadas de perversão e coprofagia, focando no sexo como instrumento de poder