terça-feira, 28 de outubro de 2014

Pasolini, Um Espírito Perturbador

por Bruno Ghetti (Valor Econômico - 24.out.2014)



Pasolini dirige Orson Welles, em
"La Ricotta", um de seus melhores filmes



No Dia de Finados de 1975, a Itália perdia uma de suas personalidades mais fortes e polivalentes. Pier Paolo Pasolini, poeta, cineasta e polemista, foi assassinado em circunstâncias obscuras nos arredores de Roma. O corpo estava praticamente irreconhecível, mas nem a pior violência pôde calar o que sua voz suave, quase feminina, já havia pronunciado àquela altura. Ainda hoje, seus filmes e textos seguem atordoantes, perturbadores.

O espírito pasoliniano é reavivado com a mostra "Quando o Cinema se Faz Poesia e Política de Seu Tempo", em cartaz no CCBB do Rio e de São Paulo (em Brasília, a partir do dia 5). Obras como “Teorema” e “Salò” serão exibidas em película, assim como longas de outros cineastas que dialogam sua filmografia, como Glauber Rocha. No Rio, a mostra é complementada por uma exposição de fotos do acervo particular de Pasolini. E em São Paulo, um debate no dia 25 trará Ninetto Davoli, ator recorrente e ex-namorado do diretor.

O nome de Pasolini voltou com força também na Europa. O último Festival de Veneza exibiu o longa “Pasolini”, de Abel Ferrara, sobre o derradeiro dia de vida do italiano. E está em cartaz no museu Martin-Gropius-Bau, em Berlim, a fabulosa exposição “Pasolini - Roma”, sobre a relação do cineasta com a capital da Itália, onde criou a maior parte de sua obra.

A princípio, a exposição deveria ser restrita a algumas cidades europeias. “Mas seria formidável ir ao Brasil, onde seria muito atual no que diz respeito às questões que levanta e ao pensamento de Pasolini”, diz o francês Alain Bergala, um dos curadores da exposição. “O problema são as obras de arte, que sempre precisam ser renegociadas. E os custos de transporte e seguros. Mas não é impossível imaginar uma versão mais leve e adaptada a outro país”, diz.

Especialista na obra de Pasolini, Bergala diz que o italiano foi o último grande intelectual de seu país. “O estatuto dele enquanto intelectual, ‘humanista’ e ‘universal’, não é mais possível hoje, pela dispersão midiática das ideias. Há intelectuais cujas ideias são ativas enquanto estão vivos, mas que se perdem com a história. Mas as obras de Pasolini são ainda hoje válidas para compreender a situação italiana. Suas profecias se revelaram acertadas”, diz o pesquisador.

Pasolini nasceu em Bolonha em 1922, mas cresceu na região de Friuli, norte da Itália. Teve contato com o dialeto local e ganhou prêmios por poemas em friulano. Com o pai, militar, nunca teve afinidade, mas havia algo de incestuoso na sua excessiva proximidade com a mãe.
Homossexual assumido, em 1949, o poeta se envolvia em seu primeiro escândalo: foi expulso do Partido Comunista após rumores de relações com menores. Isso renderia o primeiro dos seus mais de 30 processos judiciais (alguns, aliás, com imputação post mortem).

Totò e o diretor, no set de "Gaviões e Passarinhos"


Após o escândalo, em 1950, o poeta se mudou com a mãe para Roma. “Se não tivesse sido obrigado a deixar o Friuli, teria sido um outro Pasolini. Ele não era movido por uma vontade provinciana de ‘conquistar’ Roma, que era para ele o centro do poder, da língua nacional, do fascismo e tudo a que ele queria fazer resistência. Ele vai ter com essa Roma não desejada uma história passional”, explica Bergala. “Roma será, também, o modo de viver sua sexualidade de forma livre, quase pagã.”
Pasolini conheceu bem o estilo de vida e a forma de pensar do subproletariado do sul da Itália. Escreveu celebrados romances sobre ele, como “Meninos da Vida”. Ao mesmo tempo, frequentava casas de bairros nobres de intelectuais, como Alberto Moravia e Elsa Morante. Seu amplo conhecimento da “alta” e da “baixa cultura” fez com que Federico Fellini o chamasse para corroteirista de “Noites de Cabíria” (1957), sobre uma prostituta romana.

Mas Pasolini sentia que sua visão era traída quando levada por outros cineastas às telas. Virou diretor em 1961, com “Accattone – Desajuste Social”. Em um estilo realista, austero, criou uma estética muito própria. Seu cinema ficou para sempre identificado com tipos “do povo” – rapazes franzinos, idosos de pele calejada, homens desdentados. Pasolini dizia que os usava como “partículas da realidade”, como o céu e o sol. “Seus filmes envelheceram muito bem. Rever hoje ‘Accattone’ é uma experiência que fazemos ‘no presente’, não é só algo ‘cultural’”, diz Bergala.

Ler um texto ou ver um filme de Pasolini pode dar a impressão de que ele era um sujeito rude, mas vê-lo falar em entrevistas, com sua suavidade quase gentil, contradiz essa sensação. “Havia em Pasolini uma violência intelectual, que era sua forma de ‘chacoalhar’ a Itália. Mas quem conviveu com ele confirma que era o mais doce e paciente dos homens. Na TV, quando confrontado com ‘inimigos’ ideológicos, sempre explicava suas posições, com paciência. Não dá para imaginar um Pasolini fisicamente violento”, diz Bergala.

Quando, em 1964, o cineasta fez um filme sobre Jesus, foi um choque. A propaganda de “O Evangelho Segundo São Mateus” nos jornais atiçava a curiosidade: “Um filme cristão feito por um comunista?”. Sim, era isso mesmo. A esquerda celebrou o longa ao detectar traços marxistas no Jesus pasoliniano, enquanto a Igreja Católica aprovou o filme por sua fidelidade bíblica. Mas alas radicais tanto do comunismo como do catolicismo o rejeitaram; Pasolini passava longe da unanimidade.

Terence Stamp, em cena de "Teorema"


Entre poemas e textos teóricos sobre cinema, ainda nos anos 60, Pasolini usou histórias da antiguidade para criar alegorias sobre o presente, em filmes como “Édipo Rei”. No meio da década, fez um documentário sobre a sexualidade dos italianos, “Comizi d’Amore”, de valor antropológico. 
Mas sua visão pessoal sobre o tema só viria nos anos 70, na “Trilogia da Vida”, três filmes com histórias sexuais em tempos repressivos, mas com o sexo visto como algo descontraído – uma saudável subversão.

Mas Pasolini rejeitou a Trilogia ao notar que talvez tivesse fomentado a onda de filmes pornôs soft dos anos 70 (e que ele abominava). No ano de sua morte, rodou seu filme mais polêmico, “Salò, ou os 120 Dias de Sodoma”, adaptando Marquês de Sade para a Itália dos anos 40. O filme mostra uma maratona de perversões, mas o sexo, desta vez, nada tem de salutar: é uma metáfora sobre a dominação.

Pasolini morreu antes da estreia. Seu homicida confesso, o garoto de programa Pino Pelosi, já deu versões distintas sobre o crime. O poeta o havia levado para terem relações em uma praia, mas um grupo teria surgido e o espancado. No filme de Ferrara, Pasolini morre após um ataque homofóbico. Mas muitos, como Bergala, creem em crime político. “Diante de tantas evidências acumuladas desde sua morte, é difícil pensar em mera homofobia. Pelosi não estava só, Pasolini caiu em uma cilada. Havia muitos interessados em que aquela voz fosse sufocada e parasse de denunciar tudo o que não ia bem na Itália”, diz, referindo-se a setores da direita e da burguesia italianas.


A polícia da Itália ainda investiga o caso, mas Pasolini foi absolvido enquanto artista pelo júri do tempo. “O aspecto polêmico de sua recepção quando estreavam seus filmes cedeu lugar a uma avaliação mais objetiva sobre sua importância. O problema hoje, aliás, é que ele é reconhecido ‘até demais’, mesmo os seus inimigos. Virou uma espécie de ‘santo’ póstumo”, diz Bergala. Pasolini certamente rejeitaria a própria “santidade”.



SEIS PASOLINIS IMPERDÍVEIS

- Accattone (Desajuste Social)
Estreia cinematográfica de Pasolini, sobre um cafetão da periferia de Roma com sentimento de culpa (Franco Citti, um de seus atores-fetiche)
- La Ricotta
Com Orson Welles no elenco, o média-metragem mostra um sujeito que, após passar fome, se farta de quilos de ricota – e morre de indigestão
- O Evangelho Segundo São Mateus
Fiel ao texto bíblico, traz a história do Cristo em estilo austero e realista, mostrando-o como um homem doce, porém raivoso e enérgico
- Teorema
O ator mais “cool” da época, Terence Stamp, vive um estranho que se aproxima de uma família burguesa, deixando-a completamente desestabilizada
- Édipo Rei
Filmado no Marrocos, o mito grego sobre a relação incestuosa entre mãe e filho tem certa inspiração na própria ligação de Pasolini com sua mãe
- Salò, ou Os 120 Dias de Sodoma
Inspirado em Sade, o filme mais escandaloso do diretor traz cenas pesadas de perversão e coprofagia, focando no sexo como instrumento de poder


domingo, 28 de setembro de 2014


O FASCÍNIO DO HORROR
(por Bruno Ghetti - publicado no Valor Econômico, em 11/07/2014)


O cineasta Luis Buñuel (1900-1983) tinha 72 anos quando se encontrou pela primeira vez com Fritz Lang (1890-1976), então octogenário. Sem medo de parecer ridículo, o espanhol não se conteve: pediu um autógrafo ao colega austro-alemão. Afinal, muitas décadas antes, o jovem ficara tão impressionado com “A Morte Cansada” (1921), de Lang, que decidira ali virar cineasta. “Alguma coisa nesse filme me tocou profundamente, iluminando minha vida”, diria depois Buñuel, em sua autobiografia.
Mas o mestre espanhol não estava só em seu entusiasmo pela obra de Lang: outros gênios do cinema, de Sergei Eisenstein a Leni Riefenstahl, passando por Jean-Luc Godard, nunca esconderam admiração pelo diretor. Compreender os motivos desse fascínio será possível com a retrospectiva “Fritz Lang – O Horror Está no Horizonte”, em cartaz a partir do dia 11 no CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo (segue para Brasília, em 30/7, e Rio, em 13/8). A mostra traz a obra completa de Lang e o que é melhor: todos os filmes em película.
Margarete Schön em "Os Nibelungos"
A primeira fase da obra de Lang é de fato admirável. Ele estreou como cineasta em 1919 e um ano depois já era um dos diretores mais respeitados da Alemanha. Ganhou prestígio por filmes inovadores e sombrios, de inspiração expressionista (com jogos de luz e sombras e cenários barrocos), com imagens impactantes, carregadas. Procurava também representar aspectos da sociedade teutônica: “A Morte Cansada” trazia o alemão romântico; a saga “Os Nibelungos” (1924) realçava o heroísmo dos germânicos; “Dr. Mabuse” (1922) refletia o alemão do pós-Guerra. Mas seus dois filmes mais celebrados ainda estavam por vir: o distópico “Metropolis” (1927) e “M, o Vampiro de Düsseldorf” (1931), sua obra-prima.
Mas a maior parte da carreira de Lang foi em Hollywood, para onde ele migrou com a ascensão nazista nos anos 30 (sua mãe era de origem judaica). Mas se sua fase americana não foi tão inspirada como a alemã, ao menos rendeu alguns filmes de muito alto nível, como “Vive-se Uma Só Vez” (1937), variante da história de Bonnie e Clyde, e “Os Corruptos” (1953), um dos grandes noirs da década.
Henry Fonda em "Vive-se Uma Só Vez"
“Lang teve altos e baixos, com alguns grandes momentos em cada década em que trabalhou nos EUA. Mas teve dificuldades sérias na maioria dos estúdios”, diz Patrick McGilligan, autor da biografia mais completa do cineasta, “Fritz Lang: the Nature of the Beast”. “Muitos dos seus filmes americanos traziam temas e ideias de seus trabalhos anteriores, eram reconhecidamente ‘languianos’. Mas ele precisou lutar muito por isso e nem sempre conseguiu”, diz o biógrafo, ressaltando que alguns de seus filmes nos EUA foram editados à sua revelia.  
Por temas “languianos” entende-se vingança, mortes, linchamentos e a implacabilidade do destino; o cinema de Lang era altamente fatalista. Sua obra ganha ainda mais modernidade se notamos que fala muito de corrupção policial e daquilo a que estamos sujeitos quando grupos raivosos fazem julgamentos por conta própria, no calor do momento. Em tempos de “justiceiros” pelas nossas ruas, filmes como “M” e “Fúria” (1936) vêm a calhar.  
McGilligan vê na própria trajetória de Lang a motivação para a escolha de temas tão pesados e sombrios. A vida do cineasta é cheia de pontos obscuros. Um dos episódios mais turvos é a morte de Lisa Rosenthal, em 1921, sua primeira mulher, que acabara de flagrar Lang com uma amante (ele era um mulherengo incorrigível). Lisa teria se suicidado, ou talvez disparado a arma contra si sem querer, mas há chances de que o próprio Lang a tenha matado.
“Ela certamente morreu na presença dele. Se foi acidente ou assassinato, ninguém vai saber nunca, faltam evidências. Mas Lang tinha uma arma e gostava de usá-la por aí de forma melodramática”, diz McGilligan. “O caso foi abafado, e Lang prosseguiu fazendo filmes sobre homicídios que assombram o assassino. Particularmente, não acho que ele tenha sido um assassino intencional, mas ele certamente sentia culpa pelo ocorrido e canalizava esse episódio para a própria criação, mesmo quando os fatos reais eram distorcidos por um espelho”. 
McGilligan penou para retraçar a trajetória de Lang, que adorava glamourizar aspectos do próprio passado. Era com orgulho, por exemplo, que narrava (em detalhes) uma história meio épica sobre sua “fuga” da Alemanha, após ser convidado a ser o cineasta do Terceiro Reich pelo ministro da Propaganda nazista Joseph Goebbels. Lang teria recusado e, com asco, deixado o país às pressas – mas documentos desmentem essa versão, já que Lang ainda precisou retornar várias vezes à Alemanha até regularizar sua imigração.
“Não é que ele inventasse episódios, mas ele os romanceava. Mesmo como diretor, Lang era mais um adaptador que um artista original – a não ser quando trabalhava com [a ex-mulher] Thea von Harbou, que criou alguns de seus roteiros. No caso do encontro com Goebbels, os detalhes e a cronologia foram meio recriados por ele ao longo das décadas, reforçados em entrevistas. Mas o encontro de fato aconteceu”.
Algo que Lang jamais pôde falsear da própria vida era o seu comportamento tirânico nos sets. Marlene Dietrich começou a filmar “O Diabo Feito Mulher” (1952) bem animada, mas sofreu tanto no processo que chegou ao fim do longa com relações cortadas com o diretor – mais tarde, diria aos quatro ventos que Lang foi o homem mais detestável com quem já trabalhou. Peter Lorre e Spencer Tracy (e 90% de toda Hollywood) também não tinham lá belas palavras para se referir a Lang, que não media esforços para obter os efeitos que desejava. Ainda na Alemanha, ao filmar “Metropolis”, colocou em risco a vida da atriz Brigitte Helm em uma cena de incêndio só para ter um resultado mais expressivo.
“Lang tinha seus pontos fortes, mas lidar com os atores não era um deles. Conseguiu extraordinárias atuações tratando brutalmente o elenco, repetindo tomadas à exaustão”, diz seu biógrafo. “Os atores que se saíam melhor em seus filmes eram os cujos personagens ‘sofriam’ na trama. Embora haja exceções, ele não tinha leveza no convívio com astros ou técnicos. Todos estavam subordinados a seu comportamento maníaco e abusivo”.
Cena de "Coração de Apache"
Mas nem tudo é sombras no cinema de Lang. Alguns de seus filmes são até leves, como a aventura “O Tesouro do Barba Ruiva” (1955), filmada em Cinemascope (há uma famosa cena de “O Desprezo”, de Godard, em que Lang satiriza a horizontalidade dessa tecnologia: “Só serve para filmar serpentes e enterros”). E, em alguns filmes, pode-se entrever certa ternura, como sua única produção francesa, “Coração de Apache” (1934), que Lang adorava – é uma charmosa tragicomédia com atuação reluzente de Charles Boyer. “É o tipo de filme que ninguém associa a Lang, mas é um dos que mais ajuda a ter uma imagem completa de quem ele foi”, diz McGilligan.