domingo, 28 de setembro de 2014


O FASCÍNIO DO HORROR
(por Bruno Ghetti - publicado no Valor Econômico, em 11/07/2014)


O cineasta Luis Buñuel (1900-1983) tinha 72 anos quando se encontrou pela primeira vez com Fritz Lang (1890-1976), então octogenário. Sem medo de parecer ridículo, o espanhol não se conteve: pediu um autógrafo ao colega austro-alemão. Afinal, muitas décadas antes, o jovem ficara tão impressionado com “A Morte Cansada” (1921), de Lang, que decidira ali virar cineasta. “Alguma coisa nesse filme me tocou profundamente, iluminando minha vida”, diria depois Buñuel, em sua autobiografia.
Mas o mestre espanhol não estava só em seu entusiasmo pela obra de Lang: outros gênios do cinema, de Sergei Eisenstein a Leni Riefenstahl, passando por Jean-Luc Godard, nunca esconderam admiração pelo diretor. Compreender os motivos desse fascínio será possível com a retrospectiva “Fritz Lang – O Horror Está no Horizonte”, em cartaz a partir do dia 11 no CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo (segue para Brasília, em 30/7, e Rio, em 13/8). A mostra traz a obra completa de Lang e o que é melhor: todos os filmes em película.
Margarete Schön em "Os Nibelungos"
A primeira fase da obra de Lang é de fato admirável. Ele estreou como cineasta em 1919 e um ano depois já era um dos diretores mais respeitados da Alemanha. Ganhou prestígio por filmes inovadores e sombrios, de inspiração expressionista (com jogos de luz e sombras e cenários barrocos), com imagens impactantes, carregadas. Procurava também representar aspectos da sociedade teutônica: “A Morte Cansada” trazia o alemão romântico; a saga “Os Nibelungos” (1924) realçava o heroísmo dos germânicos; “Dr. Mabuse” (1922) refletia o alemão do pós-Guerra. Mas seus dois filmes mais celebrados ainda estavam por vir: o distópico “Metropolis” (1927) e “M, o Vampiro de Düsseldorf” (1931), sua obra-prima.
Mas a maior parte da carreira de Lang foi em Hollywood, para onde ele migrou com a ascensão nazista nos anos 30 (sua mãe era de origem judaica). Mas se sua fase americana não foi tão inspirada como a alemã, ao menos rendeu alguns filmes de muito alto nível, como “Vive-se Uma Só Vez” (1937), variante da história de Bonnie e Clyde, e “Os Corruptos” (1953), um dos grandes noirs da década.
Henry Fonda em "Vive-se Uma Só Vez"
“Lang teve altos e baixos, com alguns grandes momentos em cada década em que trabalhou nos EUA. Mas teve dificuldades sérias na maioria dos estúdios”, diz Patrick McGilligan, autor da biografia mais completa do cineasta, “Fritz Lang: the Nature of the Beast”. “Muitos dos seus filmes americanos traziam temas e ideias de seus trabalhos anteriores, eram reconhecidamente ‘languianos’. Mas ele precisou lutar muito por isso e nem sempre conseguiu”, diz o biógrafo, ressaltando que alguns de seus filmes nos EUA foram editados à sua revelia.  
Por temas “languianos” entende-se vingança, mortes, linchamentos e a implacabilidade do destino; o cinema de Lang era altamente fatalista. Sua obra ganha ainda mais modernidade se notamos que fala muito de corrupção policial e daquilo a que estamos sujeitos quando grupos raivosos fazem julgamentos por conta própria, no calor do momento. Em tempos de “justiceiros” pelas nossas ruas, filmes como “M” e “Fúria” (1936) vêm a calhar.  
McGilligan vê na própria trajetória de Lang a motivação para a escolha de temas tão pesados e sombrios. A vida do cineasta é cheia de pontos obscuros. Um dos episódios mais turvos é a morte de Lisa Rosenthal, em 1921, sua primeira mulher, que acabara de flagrar Lang com uma amante (ele era um mulherengo incorrigível). Lisa teria se suicidado, ou talvez disparado a arma contra si sem querer, mas há chances de que o próprio Lang a tenha matado.
“Ela certamente morreu na presença dele. Se foi acidente ou assassinato, ninguém vai saber nunca, faltam evidências. Mas Lang tinha uma arma e gostava de usá-la por aí de forma melodramática”, diz McGilligan. “O caso foi abafado, e Lang prosseguiu fazendo filmes sobre homicídios que assombram o assassino. Particularmente, não acho que ele tenha sido um assassino intencional, mas ele certamente sentia culpa pelo ocorrido e canalizava esse episódio para a própria criação, mesmo quando os fatos reais eram distorcidos por um espelho”. 
McGilligan penou para retraçar a trajetória de Lang, que adorava glamourizar aspectos do próprio passado. Era com orgulho, por exemplo, que narrava (em detalhes) uma história meio épica sobre sua “fuga” da Alemanha, após ser convidado a ser o cineasta do Terceiro Reich pelo ministro da Propaganda nazista Joseph Goebbels. Lang teria recusado e, com asco, deixado o país às pressas – mas documentos desmentem essa versão, já que Lang ainda precisou retornar várias vezes à Alemanha até regularizar sua imigração.
“Não é que ele inventasse episódios, mas ele os romanceava. Mesmo como diretor, Lang era mais um adaptador que um artista original – a não ser quando trabalhava com [a ex-mulher] Thea von Harbou, que criou alguns de seus roteiros. No caso do encontro com Goebbels, os detalhes e a cronologia foram meio recriados por ele ao longo das décadas, reforçados em entrevistas. Mas o encontro de fato aconteceu”.
Algo que Lang jamais pôde falsear da própria vida era o seu comportamento tirânico nos sets. Marlene Dietrich começou a filmar “O Diabo Feito Mulher” (1952) bem animada, mas sofreu tanto no processo que chegou ao fim do longa com relações cortadas com o diretor – mais tarde, diria aos quatro ventos que Lang foi o homem mais detestável com quem já trabalhou. Peter Lorre e Spencer Tracy (e 90% de toda Hollywood) também não tinham lá belas palavras para se referir a Lang, que não media esforços para obter os efeitos que desejava. Ainda na Alemanha, ao filmar “Metropolis”, colocou em risco a vida da atriz Brigitte Helm em uma cena de incêndio só para ter um resultado mais expressivo.
“Lang tinha seus pontos fortes, mas lidar com os atores não era um deles. Conseguiu extraordinárias atuações tratando brutalmente o elenco, repetindo tomadas à exaustão”, diz seu biógrafo. “Os atores que se saíam melhor em seus filmes eram os cujos personagens ‘sofriam’ na trama. Embora haja exceções, ele não tinha leveza no convívio com astros ou técnicos. Todos estavam subordinados a seu comportamento maníaco e abusivo”.
Cena de "Coração de Apache"
Mas nem tudo é sombras no cinema de Lang. Alguns de seus filmes são até leves, como a aventura “O Tesouro do Barba Ruiva” (1955), filmada em Cinemascope (há uma famosa cena de “O Desprezo”, de Godard, em que Lang satiriza a horizontalidade dessa tecnologia: “Só serve para filmar serpentes e enterros”). E, em alguns filmes, pode-se entrever certa ternura, como sua única produção francesa, “Coração de Apache” (1934), que Lang adorava – é uma charmosa tragicomédia com atuação reluzente de Charles Boyer. “É o tipo de filme que ninguém associa a Lang, mas é um dos que mais ajuda a ter uma imagem completa de quem ele foi”, diz McGilligan.