quinta-feira, 19 de março de 2015

Norma, uma atriz ousada
(por Bruno Ghetti - 'Valor Econômico', 20 de fevereiro de 2015)

Certa vez, João Gilberto encarava fixamente o olhar de Norma Bengell quando, sem pudores, disse: “Parecem os olhos de uma vaca”. Explosiva, a atriz bem que poderia ter respondido à altura – e com veemência. Mas Norma era também surpreendente: ao ouvir o comentário, gargalhou, para em seguida concordar: “Tenho mesmo um olhar comprido, de vaca”.
Das várias e saborosas histórias de “Norma Bengell”, autobiografia da atriz morta em 2013, lançada pela editora nVersos, esta talvez seja a menos importante, mas traz elementos que ajudam a entender o fascínio que essa atriz excepcional causava ao surgir na tela. A figura de Norma era algo de fato animalesco, sensual, que atraía e perturbava os homens. Também tinha um olhar triste e perdido, expressivo, como o de um bicho que age só por instinto. E, como vemos no livro, Norma quase sempre se guiou na vida instintivamente. Para seu próprio bem – e o próprio mal.

Norma Bengell em "Noite Vazia"

Carioca, Norma cresceu em Copacabana, filha única de pais de classe média baixa. Teve uma infância solitária, até se tornar uma adolescente sinuosa. Foi modelo, vedete, cantora e, enfim, atriz. Fez o primeiro nu frontal das nossas telas, em “Os Cafajestes”, e brilhou no premiado “O Pagador de Promessas”. Estrelou ainda filmes da importância de “Noite Vazia”, “O Anjo Nasceu” e “Mar de Rosas”. Filmou também na Itália, passou por Hollywood e fez teatro na França.
Norma era rebelde e emancipada. Não refreava a própria carnalidade – seus romances ocupam boa parte da obra. Ela fala da união com o ator italiano Gabriele Tinti e menciona os casos que teve com Anselmo Duarte (“não foi legal”), Alberto Sordi (“era feio e moralista”) e Alain Delon – os dois brigaram quando o galã a forçou a fazer sexo, o que causou nela um misto de repulsa e excitação. Seus namoros mais felizes foram com mulheres: a feminista Gilda Grillo e a produtora Sônia Nercessian (no livro, chamada de Sandra), com quem viveu por décadas.
A atriz conheceu meio mundo, e o livro narra seu encontro com famosos que vão de Orson Welles a Mick Jagger, de Jango a Collor. Seus pontos baixos também estão lá: seu sequestro durante a Ditadura, a dureza no autoexílio na França e o pesadelo que foi “O Guarani”, filme fracassado que lhe trouxe problemas judiciais ao prestar contas. As páginas finais são melancólicas como o fim da vida de Norma, em meio à escassez financeira, problemas de saúde e uma enorme solidão.
A atriz evita o tom de falsa modéstia e dá a entender que sua vida poderia ter sido ainda mais cinematográfica: por pouco não fez filmes com Fellini, Truffaut e Visconti. Se é verdade, nunca saberemos, mas sua carreira por aqui é tão grandiosa que ela nem precisou de tais grifes para ser uma de nossas maiores. Foi o Brasil quem melhor soube aproveitar seu talento – o mesmo país que a esqueceu no fim da vida.
O livro são textos esparsos da própria Norma organizados pela produtora Christina Caneca. A edição tem uma ou outra falha de revisão e se ressente de um índice onomástico, mas tem belas fotos e trechos muito bem escritos. E mesmo que muitas frases tenham sido reelaboradas na edição, quase ouvimos a voz lânguida da atriz dizendo as palavras enquanto as lemos. Muito do que está ali talvez não tenha ocorrido bem como ela expõe, mas até isso é algo positivo: dá uma dimensão ainda maior de quem era essa mulher que viveu como quis e pôde, mesmo sabendo que poderia pagar caro por isso.

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