(por Bruno Ghetti - 'Valor Econômico', 20 de fevereiro de 2015)
Certa vez, João Gilberto encarava fixamente o olhar de Norma
Bengell quando, sem pudores, disse: “Parecem os olhos de uma vaca”. Explosiva,
a atriz bem que poderia ter respondido à altura – e com veemência. Mas Norma
era também surpreendente: ao ouvir o comentário, gargalhou, para em seguida
concordar: “Tenho mesmo um olhar comprido, de vaca”.
Das várias e saborosas histórias de “Norma Bengell”,
autobiografia da atriz morta em 2013, lançada pela editora nVersos, esta talvez
seja a menos importante, mas traz elementos que ajudam a entender o fascínio
que essa atriz excepcional causava ao surgir na tela. A figura de Norma era
algo de fato animalesco, sensual, que atraía e perturbava os homens. Também
tinha um olhar triste e perdido, expressivo, como o de um bicho que age só por
instinto. E, como vemos no livro, Norma quase sempre se guiou na vida
instintivamente. Para seu próprio bem – e o próprio mal.
Norma Bengell em "Noite Vazia" |
Carioca, Norma cresceu em Copacabana, filha única de pais de
classe média baixa. Teve uma infância solitária, até se tornar uma adolescente
sinuosa. Foi modelo, vedete, cantora e, enfim, atriz. Fez o primeiro nu frontal
das nossas telas, em “Os Cafajestes”, e brilhou no premiado “O Pagador de
Promessas”. Estrelou ainda filmes da importância de “Noite Vazia”, “O Anjo
Nasceu” e “Mar de Rosas”. Filmou também na Itália, passou por Hollywood e fez
teatro na França.
Norma era rebelde e emancipada. Não refreava a própria
carnalidade – seus romances ocupam boa parte da obra. Ela fala da união com o
ator italiano Gabriele Tinti e menciona os casos que teve com Anselmo Duarte
(“não foi legal”), Alberto Sordi (“era feio e moralista”) e Alain Delon – os
dois brigaram quando o galã a forçou a fazer sexo, o que causou nela um misto
de repulsa e excitação. Seus namoros mais felizes foram com mulheres: a
feminista Gilda Grillo e a produtora Sônia Nercessian (no livro, chamada de
Sandra), com quem viveu por décadas.
A atriz conheceu meio mundo, e o livro narra seu encontro com
famosos que vão de Orson Welles a Mick Jagger, de Jango a Collor. Seus pontos
baixos também estão lá: seu sequestro durante a Ditadura, a dureza no
autoexílio na França e o pesadelo que foi “O Guarani”, filme fracassado que lhe
trouxe problemas judiciais ao prestar contas. As páginas finais são
melancólicas como o fim da vida de Norma, em meio à escassez financeira,
problemas de saúde e uma enorme solidão.
A atriz evita o tom de falsa modéstia e dá a entender que sua
vida poderia ter sido ainda mais cinematográfica: por pouco não fez filmes com
Fellini, Truffaut e Visconti. Se é verdade, nunca saberemos, mas sua carreira
por aqui é tão grandiosa que ela nem precisou de tais grifes para ser uma de
nossas maiores. Foi o Brasil quem melhor soube aproveitar seu talento – o mesmo
país que a esqueceu no fim da vida.
O livro são textos esparsos da própria Norma organizados pela
produtora Christina Caneca. A edição tem uma ou outra falha de revisão e se
ressente de um índice onomástico, mas tem belas fotos e trechos muito bem
escritos. E mesmo que muitas frases tenham sido reelaboradas na edição, quase
ouvimos a voz lânguida da atriz dizendo as palavras enquanto as lemos. Muito do
que está ali talvez não tenha ocorrido bem como ela expõe, mas até isso é algo
positivo: dá uma dimensão ainda maior de quem era essa mulher que viveu como
quis e pôde, mesmo sabendo que poderia pagar caro por isso.
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