FOCO FECHADO EM TRUFFAUT
(por Bruno Ghetti - publicado no "Valor",
10.julho.15)
O cinema de François Truffaut (1932-1984) costuma ser associado a uma visão de mundo lírica e humanista. Com razão: seus filmes tocam com muita delicadeza em temas como o amor, a infância e a paixão pelo cinema. Mas há aspectos mais soturnos na obra do francês que talvez chamem a atenção só dos mais cinéfilos; há em muitos de seus filmes, por exemplo, uma certa obsessão pela morte, instantes de inesperada violência e a crença de que o amor pleno é algo impossível – e trágico.
No dia 14, uma grande exposição chega a São Paulo prometendo
revelar todas as facetas, solares ou sombrias, da vida e obra do cineasta que
ajudou a revitalizar o cinema francês (e mundial) no fim dos anos 50, com a
chamada Nouvelle Vague. “François Truffaut, um Cineasta Apaixonado” traz ao MIS
(Museu da Imagem e do Som) objetos pessoais, fotos, cartas, áudios e vídeos
para ajudar o visitante a ter uma visão mais completa sobre o diretor de “Jules
e Jim” (1962) e “A Noite Americana” (1973).
Alexandra Stewart e François Truffaut em "A Noite Americana" |
A exposição foi montada no ano passado na Cinemateca de
Paris, nos 30 anos de morte do diretor. E os paulistanos terão o orgulho de ser
os primeiros no mundo a conferir a mostra após os parisienses.
“O MIS mostrou desejo de receber a exposição. Foi um gesto ao
mesmo tempo amistoso e a prova de que ela interessaria ao público de São Paulo
e do Brasil”, diz Serge Toubiana, diretor da Cinemateca de Paris e curador. “Em
1998, fui ao Rio lançar uma biografia de Truffaut e tive a prova de como os
cinéfilos brasileiros conhecem e apreciam sua obra. Ele é visto não só como um
representante da Nouvelle Vague como também o seu emblema.”
A mostra francesa e a brasileira, porém, são conceitualmente
distintas. A de Paris tinha como fio condutor a verve literária de Truffaut – o
cineasta era um amante das letras e escreveu muito ao longo da vida, de
bilhetes a roteiros. Esses documentos originais estarão na exposição
brasileira, que, porém, terá caráter mais didático.
“Queria que a exposição, além de apresentar os diversos
aspectos da vida e obra de Truffaut, pudesse permitir uma imersão nesse
universo mesmo para os não iniciados”, diz André Sturm, diretor do MIS. “Uma
das principais decisões foi de que o amor pelo cinema, pelos filmes e pelas
mulheres teria que ser nosso foco”, ele explica, dizendo que esse conceito norteou
a seleção dos cerca de 600 itens expostos.
A exposição fez sucesso na França e tem tudo para repetir o
êxito aqui. Afinal, Truffaut é um daqueles diretores do chamado “cinema de
autor” (termo que ele ajudou a criar, em oposição àquele em que não se nota a
personalidade do cineasta) cuja popularidade ultrapassou os limites da
cinefilia mais contumaz. Como um Federico Fellini ou um Woody Allen, o francês
viu seu nome virar uma grife que extrapolou os guetos cinéfilos.
Françoise Dorléac, em "Um Só Pecado" |
A elegância e charme de Truffaut são fáceis de reconhecer – e
apreciar. Mesmo três décadas após sua morte, ele ainda cativa novos públicos.
“Sua memória segue viva, seus filmes são vistos e revistos. E vários diretores
contemporâneos fazem referências a ele em suas obras”, diz Toubiana, que exemplifica
com duas produções do último Festival de Cannes. “Há traços da obra dele em
‘Trois Souvenirs de Ma Jeunesse’, de Arnaud Desplechin, exibido em mostra
paralela. E em competição houve um longa com um roteiro escrito por Truffaut em
1973, mas nunca filmado: ‘Marguerite et Julien’, dirigido por Valérie
Donzelli.”
Os primeiros anos de vida do cineasta, porém, apontavam para
o lado oposto ao da figura cultural proeminente que ele se tornaria. Truffaut
nasceu pobre e foi delinquente na adolescência. Rumava a uma vida sem
perspectivas até conhecer e cair nas graças do teórico André Bazin, que logo
notou sua inteligência e seu amor pelo cinema.
Apadrinhado por ele, Truffaut se tornou um arguto crítico
cinematográfico, com admirável poder de análise e certa inclinação à polêmica –
a mais famosa foi em 1954, quando repreendeu o que ele sarcasticamente chamava
de “cinema de qualidade”, a pomposa produção francesa de então. Ele defendia um
cinema mais autoral, livre e fluido, que tomaria forma no fim daquela década
com a Nouvelle Vague, na obra de cineastas como Jean-Luc Godard e Claude
Chabrol – além do próprio Truffaut.
“O público se impressiona ao ver a coerência incrível de seus
filmes. É o que distingue sua obra da dos demais da Nouvelle Vague: os filmes ressoam
uns nos outros, há um eco entre os temas – até frases de um filme são retomadas
em outros”, diz Toubiana. O pesquisador Antoine de Baecque, que coescreveu com
Toubiana “François Truffaut: uma Biografia”, também destaca a congruência de
seu cinema. “Ele às vezes fazia um filme que negava o que havia acabado de
rodar. Mas em vários pontos, esse longa se ligava ao anterior. Todos os seus
filmes, juntos, formam uma obra altamente coesa”.
No longa de estreia, “Os Incompreendidos” (1959), Truffaut se
inspirava na própria infância. O personagem Antoine Doinel, seu alter ego,
seria retomado em quatro filmes: “Antoine e Colette” (1962), “Beijos Proibidos”
(1968), “Domicílio Conjugal (1970) e “O Amor em Fuga” (1979). Muito da essência
do Truffaut homem e artista está nesse grupo de filmes; Doinel nasceu um
marginal, um pária que precisa ser sagaz e enérgico para sobreviver em um
ambiente hostil. Mas suas pequenas conquistas na busca por se inserir na
sociedade o tornam com os anos cada vez mais amansado, quiçá “aburguesado”.
Algo semelhante ao que ocorreu com a própria vida e trajetória artística de
Truffaut, que criava ali um personagem altamente pessoal, mas que era também um
protótipo do jovem médio moderno – um “homem sem qualidades”, que deseja apenas
levar a vida, sem maiores ambições ou pretensões de mudar o mundo.
Claude Jade e Jean-Pierre Léaud, em "Domicílio Conjugal" |
“O público se reconhece em Truffaut, em seu cinema
autobiográfico”, diz De Baecque, teorizando sobre sua popularidade. Mas na
turbulenta virada dos anos 60 para os 70, um personagem apolítico como Doinel
podia soar extemporâneo em alguns meios. Assim como o cinema de Truffaut, que
àquela altura já não tinha o espírito de atrevimento dos primeiros filmes e
caminhava rumo a certo classicismo, o que afastou parte da crítica. Por um
tempo, houve até uma rixa cinéfila entre os fãs do “comportado” Truffaut e os
do anárquico Godard.
“Nos anos 70, na revista ‘Cahiers du Cinéma’, venerávamos
Godard, e essa admiração nos impedia de ver a singularidade romanesca de
Truffaut. Eu brigava com amigos para convencê-los de que dava para admirar os
dois ao mesmo tempo”, recorda-se Toubiana.
Hoje, os corações cinéfilos têm espaço de sobra para ambos. E
a obra de Truffaut pós-anos 60, se na época era tida por muitos como rendição
ao cinema comercial, hoje é interpretada como coerência e parte de um
amadurecimento artístico. “Ao nadar contra a corrente, Truffaut manteve-se fiel
a si mesmo”, conclui Toubiana.
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