sexta-feira, 10 de julho de 2015

FOCO FECHADO EM TRUFFAUT
(por Bruno Ghetti - publicado no "Valor", 10.julho.15) 



O cinema de François Truffaut (1932-1984) costuma ser associado a uma visão de mundo lírica e humanista. Com razão: seus filmes tocam com muita delicadeza em temas como o amor, a infância e a paixão pelo cinema. Mas há aspectos mais soturnos na obra do francês que talvez chamem a atenção só dos mais cinéfilos; há em muitos de seus filmes, por exemplo, uma certa obsessão pela morte, instantes de inesperada violência e a crença de que o amor pleno é algo impossível – e trágico.

No dia 14, uma grande exposição chega a São Paulo prometendo revelar todas as facetas, solares ou sombrias, da vida e obra do cineasta que ajudou a revitalizar o cinema francês (e mundial) no fim dos anos 50, com a chamada Nouvelle Vague. “François Truffaut, um Cineasta Apaixonado” traz ao MIS (Museu da Imagem e do Som) objetos pessoais, fotos, cartas, áudios e vídeos para ajudar o visitante a ter uma visão mais completa sobre o diretor de “Jules e Jim” (1962) e “A Noite Americana” (1973).

Alexandra Stewart e François Truffaut em "A Noite Americana"

A exposição foi montada no ano passado na Cinemateca de Paris, nos 30 anos de morte do diretor. E os paulistanos terão o orgulho de ser os primeiros no mundo a conferir a mostra após os parisienses.
“O MIS mostrou desejo de receber a exposição. Foi um gesto ao mesmo tempo amistoso e a prova de que ela interessaria ao público de São Paulo e do Brasil”, diz Serge Toubiana, diretor da Cinemateca de Paris e curador. “Em 1998, fui ao Rio lançar uma biografia de Truffaut e tive a prova de como os cinéfilos brasileiros conhecem e apreciam sua obra. Ele é visto não só como um representante da Nouvelle Vague como também o seu emblema.”

A mostra francesa e a brasileira, porém, são conceitualmente distintas. A de Paris tinha como fio condutor a verve literária de Truffaut – o cineasta era um amante das letras e escreveu muito ao longo da vida, de bilhetes a roteiros. Esses documentos originais estarão na exposição brasileira, que, porém, terá caráter mais didático.

“Queria que a exposição, além de apresentar os diversos aspectos da vida e obra de Truffaut, pudesse permitir uma imersão nesse universo mesmo para os não iniciados”, diz André Sturm, diretor do MIS. “Uma das principais decisões foi de que o amor pelo cinema, pelos filmes e pelas mulheres teria que ser nosso foco”, ele explica, dizendo que esse conceito norteou a seleção dos cerca de 600 itens expostos.

A exposição fez sucesso na França e tem tudo para repetir o êxito aqui. Afinal, Truffaut é um daqueles diretores do chamado “cinema de autor” (termo que ele ajudou a criar, em oposição àquele em que não se nota a personalidade do cineasta) cuja popularidade ultrapassou os limites da cinefilia mais contumaz. Como um Federico Fellini ou um Woody Allen, o francês viu seu nome virar uma grife que extrapolou os guetos cinéfilos.

Françoise Dorléac, em "Um Só Pecado"

A elegância e charme de Truffaut são fáceis de reconhecer – e apreciar. Mesmo três décadas após sua morte, ele ainda cativa novos públicos. “Sua memória segue viva, seus filmes são vistos e revistos. E vários diretores contemporâneos fazem referências a ele em suas obras”, diz Toubiana, que exemplifica com duas produções do último Festival de Cannes. “Há traços da obra dele em ‘Trois Souvenirs de Ma Jeunesse’, de Arnaud Desplechin, exibido em mostra paralela. E em competição houve um longa com um roteiro escrito por Truffaut em 1973, mas nunca filmado: ‘Marguerite et Julien’, dirigido por Valérie Donzelli.”

Os primeiros anos de vida do cineasta, porém, apontavam para o lado oposto ao da figura cultural proeminente que ele se tornaria. Truffaut nasceu pobre e foi delinquente na adolescência. Rumava a uma vida sem perspectivas até conhecer e cair nas graças do teórico André Bazin, que logo notou sua inteligência e seu amor pelo cinema.

Apadrinhado por ele, Truffaut se tornou um arguto crítico cinematográfico, com admirável poder de análise e certa inclinação à polêmica – a mais famosa foi em 1954, quando repreendeu o que ele sarcasticamente chamava de “cinema de qualidade”, a pomposa produção francesa de então. Ele defendia um cinema mais autoral, livre e fluido, que tomaria forma no fim daquela década com a Nouvelle Vague, na obra de cineastas como Jean-Luc Godard e Claude Chabrol – além do próprio Truffaut.

“O público se impressiona ao ver a coerência incrível de seus filmes. É o que distingue sua obra da dos demais da Nouvelle Vague: os filmes ressoam uns nos outros, há um eco entre os temas – até frases de um filme são retomadas em outros”, diz Toubiana. O pesquisador Antoine de Baecque, que coescreveu com Toubiana “François Truffaut: uma Biografia”, também destaca a congruência de seu cinema. “Ele às vezes fazia um filme que negava o que havia acabado de rodar. Mas em vários pontos, esse longa se ligava ao anterior. Todos os seus filmes, juntos, formam uma obra altamente coesa”.

No longa de estreia, “Os Incompreendidos” (1959), Truffaut se inspirava na própria infância. O personagem Antoine Doinel, seu alter ego, seria retomado em quatro filmes: “Antoine e Colette” (1962), “Beijos Proibidos” (1968), “Domicílio Conjugal (1970) e “O Amor em Fuga” (1979). Muito da essência do Truffaut homem e artista está nesse grupo de filmes; Doinel nasceu um marginal, um pária que precisa ser sagaz e enérgico para sobreviver em um ambiente hostil. Mas suas pequenas conquistas na busca por se inserir na sociedade o tornam com os anos cada vez mais amansado, quiçá “aburguesado”. Algo semelhante ao que ocorreu com a própria vida e trajetória artística de Truffaut, que criava ali um personagem altamente pessoal, mas que era também um protótipo do jovem médio moderno – um “homem sem qualidades”, que deseja apenas levar a vida, sem maiores ambições ou pretensões de mudar o mundo.

Claude Jade e Jean-Pierre Léaud, em "Domicílio Conjugal"

“O público se reconhece em Truffaut, em seu cinema autobiográfico”, diz De Baecque, teorizando sobre sua popularidade. Mas na turbulenta virada dos anos 60 para os 70, um personagem apolítico como Doinel podia soar extemporâneo em alguns meios. Assim como o cinema de Truffaut, que àquela altura já não tinha o espírito de atrevimento dos primeiros filmes e caminhava rumo a certo classicismo, o que afastou parte da crítica. Por um tempo, houve até uma rixa cinéfila entre os fãs do “comportado” Truffaut e os do anárquico Godard.

“Nos anos 70, na revista ‘Cahiers du Cinéma’, venerávamos Godard, e essa admiração nos impedia de ver a singularidade romanesca de Truffaut. Eu brigava com amigos para convencê-los de que dava para admirar os dois ao mesmo tempo”, recorda-se Toubiana.

Hoje, os corações cinéfilos têm espaço de sobra para ambos. E a obra de Truffaut pós-anos 60, se na época era tida por muitos como rendição ao cinema comercial, hoje é interpretada como coerência e parte de um amadurecimento artístico. “Ao nadar contra a corrente, Truffaut manteve-se fiel a si mesmo”, conclui Toubiana.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Norma, uma atriz ousada
(por Bruno Ghetti - 'Valor Econômico', 20 de fevereiro de 2015)

Certa vez, João Gilberto encarava fixamente o olhar de Norma Bengell quando, sem pudores, disse: “Parecem os olhos de uma vaca”. Explosiva, a atriz bem que poderia ter respondido à altura – e com veemência. Mas Norma era também surpreendente: ao ouvir o comentário, gargalhou, para em seguida concordar: “Tenho mesmo um olhar comprido, de vaca”.
Das várias e saborosas histórias de “Norma Bengell”, autobiografia da atriz morta em 2013, lançada pela editora nVersos, esta talvez seja a menos importante, mas traz elementos que ajudam a entender o fascínio que essa atriz excepcional causava ao surgir na tela. A figura de Norma era algo de fato animalesco, sensual, que atraía e perturbava os homens. Também tinha um olhar triste e perdido, expressivo, como o de um bicho que age só por instinto. E, como vemos no livro, Norma quase sempre se guiou na vida instintivamente. Para seu próprio bem – e o próprio mal.

Norma Bengell em "Noite Vazia"

Carioca, Norma cresceu em Copacabana, filha única de pais de classe média baixa. Teve uma infância solitária, até se tornar uma adolescente sinuosa. Foi modelo, vedete, cantora e, enfim, atriz. Fez o primeiro nu frontal das nossas telas, em “Os Cafajestes”, e brilhou no premiado “O Pagador de Promessas”. Estrelou ainda filmes da importância de “Noite Vazia”, “O Anjo Nasceu” e “Mar de Rosas”. Filmou também na Itália, passou por Hollywood e fez teatro na França.
Norma era rebelde e emancipada. Não refreava a própria carnalidade – seus romances ocupam boa parte da obra. Ela fala da união com o ator italiano Gabriele Tinti e menciona os casos que teve com Anselmo Duarte (“não foi legal”), Alberto Sordi (“era feio e moralista”) e Alain Delon – os dois brigaram quando o galã a forçou a fazer sexo, o que causou nela um misto de repulsa e excitação. Seus namoros mais felizes foram com mulheres: a feminista Gilda Grillo e a produtora Sônia Nercessian (no livro, chamada de Sandra), com quem viveu por décadas.
A atriz conheceu meio mundo, e o livro narra seu encontro com famosos que vão de Orson Welles a Mick Jagger, de Jango a Collor. Seus pontos baixos também estão lá: seu sequestro durante a Ditadura, a dureza no autoexílio na França e o pesadelo que foi “O Guarani”, filme fracassado que lhe trouxe problemas judiciais ao prestar contas. As páginas finais são melancólicas como o fim da vida de Norma, em meio à escassez financeira, problemas de saúde e uma enorme solidão.
A atriz evita o tom de falsa modéstia e dá a entender que sua vida poderia ter sido ainda mais cinematográfica: por pouco não fez filmes com Fellini, Truffaut e Visconti. Se é verdade, nunca saberemos, mas sua carreira por aqui é tão grandiosa que ela nem precisou de tais grifes para ser uma de nossas maiores. Foi o Brasil quem melhor soube aproveitar seu talento – o mesmo país que a esqueceu no fim da vida.
O livro são textos esparsos da própria Norma organizados pela produtora Christina Caneca. A edição tem uma ou outra falha de revisão e se ressente de um índice onomástico, mas tem belas fotos e trechos muito bem escritos. E mesmo que muitas frases tenham sido reelaboradas na edição, quase ouvimos a voz lânguida da atriz dizendo as palavras enquanto as lemos. Muito do que está ali talvez não tenha ocorrido bem como ela expõe, mas até isso é algo positivo: dá uma dimensão ainda maior de quem era essa mulher que viveu como quis e pôde, mesmo sabendo que poderia pagar caro por isso.

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terça-feira, 28 de outubro de 2014

Pasolini, Um Espírito Perturbador

por Bruno Ghetti (Valor Econômico - 24.out.2014)



Pasolini dirige Orson Welles, em
"La Ricotta", um de seus melhores filmes



No Dia de Finados de 1975, a Itália perdia uma de suas personalidades mais fortes e polivalentes. Pier Paolo Pasolini, poeta, cineasta e polemista, foi assassinado em circunstâncias obscuras nos arredores de Roma. O corpo estava praticamente irreconhecível, mas nem a pior violência pôde calar o que sua voz suave, quase feminina, já havia pronunciado àquela altura. Ainda hoje, seus filmes e textos seguem atordoantes, perturbadores.

O espírito pasoliniano é reavivado com a mostra "Quando o Cinema se Faz Poesia e Política de Seu Tempo", em cartaz no CCBB do Rio e de São Paulo (em Brasília, a partir do dia 5). Obras como “Teorema” e “Salò” serão exibidas em película, assim como longas de outros cineastas que dialogam sua filmografia, como Glauber Rocha. No Rio, a mostra é complementada por uma exposição de fotos do acervo particular de Pasolini. E em São Paulo, um debate no dia 25 trará Ninetto Davoli, ator recorrente e ex-namorado do diretor.

O nome de Pasolini voltou com força também na Europa. O último Festival de Veneza exibiu o longa “Pasolini”, de Abel Ferrara, sobre o derradeiro dia de vida do italiano. E está em cartaz no museu Martin-Gropius-Bau, em Berlim, a fabulosa exposição “Pasolini - Roma”, sobre a relação do cineasta com a capital da Itália, onde criou a maior parte de sua obra.

A princípio, a exposição deveria ser restrita a algumas cidades europeias. “Mas seria formidável ir ao Brasil, onde seria muito atual no que diz respeito às questões que levanta e ao pensamento de Pasolini”, diz o francês Alain Bergala, um dos curadores da exposição. “O problema são as obras de arte, que sempre precisam ser renegociadas. E os custos de transporte e seguros. Mas não é impossível imaginar uma versão mais leve e adaptada a outro país”, diz.

Especialista na obra de Pasolini, Bergala diz que o italiano foi o último grande intelectual de seu país. “O estatuto dele enquanto intelectual, ‘humanista’ e ‘universal’, não é mais possível hoje, pela dispersão midiática das ideias. Há intelectuais cujas ideias são ativas enquanto estão vivos, mas que se perdem com a história. Mas as obras de Pasolini são ainda hoje válidas para compreender a situação italiana. Suas profecias se revelaram acertadas”, diz o pesquisador.

Pasolini nasceu em Bolonha em 1922, mas cresceu na região de Friuli, norte da Itália. Teve contato com o dialeto local e ganhou prêmios por poemas em friulano. Com o pai, militar, nunca teve afinidade, mas havia algo de incestuoso na sua excessiva proximidade com a mãe.
Homossexual assumido, em 1949, o poeta se envolvia em seu primeiro escândalo: foi expulso do Partido Comunista após rumores de relações com menores. Isso renderia o primeiro dos seus mais de 30 processos judiciais (alguns, aliás, com imputação post mortem).

Totò e o diretor, no set de "Gaviões e Passarinhos"


Após o escândalo, em 1950, o poeta se mudou com a mãe para Roma. “Se não tivesse sido obrigado a deixar o Friuli, teria sido um outro Pasolini. Ele não era movido por uma vontade provinciana de ‘conquistar’ Roma, que era para ele o centro do poder, da língua nacional, do fascismo e tudo a que ele queria fazer resistência. Ele vai ter com essa Roma não desejada uma história passional”, explica Bergala. “Roma será, também, o modo de viver sua sexualidade de forma livre, quase pagã.”
Pasolini conheceu bem o estilo de vida e a forma de pensar do subproletariado do sul da Itália. Escreveu celebrados romances sobre ele, como “Meninos da Vida”. Ao mesmo tempo, frequentava casas de bairros nobres de intelectuais, como Alberto Moravia e Elsa Morante. Seu amplo conhecimento da “alta” e da “baixa cultura” fez com que Federico Fellini o chamasse para corroteirista de “Noites de Cabíria” (1957), sobre uma prostituta romana.

Mas Pasolini sentia que sua visão era traída quando levada por outros cineastas às telas. Virou diretor em 1961, com “Accattone – Desajuste Social”. Em um estilo realista, austero, criou uma estética muito própria. Seu cinema ficou para sempre identificado com tipos “do povo” – rapazes franzinos, idosos de pele calejada, homens desdentados. Pasolini dizia que os usava como “partículas da realidade”, como o céu e o sol. “Seus filmes envelheceram muito bem. Rever hoje ‘Accattone’ é uma experiência que fazemos ‘no presente’, não é só algo ‘cultural’”, diz Bergala.

Ler um texto ou ver um filme de Pasolini pode dar a impressão de que ele era um sujeito rude, mas vê-lo falar em entrevistas, com sua suavidade quase gentil, contradiz essa sensação. “Havia em Pasolini uma violência intelectual, que era sua forma de ‘chacoalhar’ a Itália. Mas quem conviveu com ele confirma que era o mais doce e paciente dos homens. Na TV, quando confrontado com ‘inimigos’ ideológicos, sempre explicava suas posições, com paciência. Não dá para imaginar um Pasolini fisicamente violento”, diz Bergala.

Quando, em 1964, o cineasta fez um filme sobre Jesus, foi um choque. A propaganda de “O Evangelho Segundo São Mateus” nos jornais atiçava a curiosidade: “Um filme cristão feito por um comunista?”. Sim, era isso mesmo. A esquerda celebrou o longa ao detectar traços marxistas no Jesus pasoliniano, enquanto a Igreja Católica aprovou o filme por sua fidelidade bíblica. Mas alas radicais tanto do comunismo como do catolicismo o rejeitaram; Pasolini passava longe da unanimidade.

Terence Stamp, em cena de "Teorema"


Entre poemas e textos teóricos sobre cinema, ainda nos anos 60, Pasolini usou histórias da antiguidade para criar alegorias sobre o presente, em filmes como “Édipo Rei”. No meio da década, fez um documentário sobre a sexualidade dos italianos, “Comizi d’Amore”, de valor antropológico. 
Mas sua visão pessoal sobre o tema só viria nos anos 70, na “Trilogia da Vida”, três filmes com histórias sexuais em tempos repressivos, mas com o sexo visto como algo descontraído – uma saudável subversão.

Mas Pasolini rejeitou a Trilogia ao notar que talvez tivesse fomentado a onda de filmes pornôs soft dos anos 70 (e que ele abominava). No ano de sua morte, rodou seu filme mais polêmico, “Salò, ou os 120 Dias de Sodoma”, adaptando Marquês de Sade para a Itália dos anos 40. O filme mostra uma maratona de perversões, mas o sexo, desta vez, nada tem de salutar: é uma metáfora sobre a dominação.

Pasolini morreu antes da estreia. Seu homicida confesso, o garoto de programa Pino Pelosi, já deu versões distintas sobre o crime. O poeta o havia levado para terem relações em uma praia, mas um grupo teria surgido e o espancado. No filme de Ferrara, Pasolini morre após um ataque homofóbico. Mas muitos, como Bergala, creem em crime político. “Diante de tantas evidências acumuladas desde sua morte, é difícil pensar em mera homofobia. Pelosi não estava só, Pasolini caiu em uma cilada. Havia muitos interessados em que aquela voz fosse sufocada e parasse de denunciar tudo o que não ia bem na Itália”, diz, referindo-se a setores da direita e da burguesia italianas.


A polícia da Itália ainda investiga o caso, mas Pasolini foi absolvido enquanto artista pelo júri do tempo. “O aspecto polêmico de sua recepção quando estreavam seus filmes cedeu lugar a uma avaliação mais objetiva sobre sua importância. O problema hoje, aliás, é que ele é reconhecido ‘até demais’, mesmo os seus inimigos. Virou uma espécie de ‘santo’ póstumo”, diz Bergala. Pasolini certamente rejeitaria a própria “santidade”.



SEIS PASOLINIS IMPERDÍVEIS

- Accattone (Desajuste Social)
Estreia cinematográfica de Pasolini, sobre um cafetão da periferia de Roma com sentimento de culpa (Franco Citti, um de seus atores-fetiche)
- La Ricotta
Com Orson Welles no elenco, o média-metragem mostra um sujeito que, após passar fome, se farta de quilos de ricota – e morre de indigestão
- O Evangelho Segundo São Mateus
Fiel ao texto bíblico, traz a história do Cristo em estilo austero e realista, mostrando-o como um homem doce, porém raivoso e enérgico
- Teorema
O ator mais “cool” da época, Terence Stamp, vive um estranho que se aproxima de uma família burguesa, deixando-a completamente desestabilizada
- Édipo Rei
Filmado no Marrocos, o mito grego sobre a relação incestuosa entre mãe e filho tem certa inspiração na própria ligação de Pasolini com sua mãe
- Salò, ou Os 120 Dias de Sodoma
Inspirado em Sade, o filme mais escandaloso do diretor traz cenas pesadas de perversão e coprofagia, focando no sexo como instrumento de poder


domingo, 28 de setembro de 2014


O FASCÍNIO DO HORROR
(por Bruno Ghetti - publicado no Valor Econômico, em 11/07/2014)


O cineasta Luis Buñuel (1900-1983) tinha 72 anos quando se encontrou pela primeira vez com Fritz Lang (1890-1976), então octogenário. Sem medo de parecer ridículo, o espanhol não se conteve: pediu um autógrafo ao colega austro-alemão. Afinal, muitas décadas antes, o jovem ficara tão impressionado com “A Morte Cansada” (1921), de Lang, que decidira ali virar cineasta. “Alguma coisa nesse filme me tocou profundamente, iluminando minha vida”, diria depois Buñuel, em sua autobiografia.
Mas o mestre espanhol não estava só em seu entusiasmo pela obra de Lang: outros gênios do cinema, de Sergei Eisenstein a Leni Riefenstahl, passando por Jean-Luc Godard, nunca esconderam admiração pelo diretor. Compreender os motivos desse fascínio será possível com a retrospectiva “Fritz Lang – O Horror Está no Horizonte”, em cartaz a partir do dia 11 no CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo (segue para Brasília, em 30/7, e Rio, em 13/8). A mostra traz a obra completa de Lang e o que é melhor: todos os filmes em película.
Margarete Schön em "Os Nibelungos"
A primeira fase da obra de Lang é de fato admirável. Ele estreou como cineasta em 1919 e um ano depois já era um dos diretores mais respeitados da Alemanha. Ganhou prestígio por filmes inovadores e sombrios, de inspiração expressionista (com jogos de luz e sombras e cenários barrocos), com imagens impactantes, carregadas. Procurava também representar aspectos da sociedade teutônica: “A Morte Cansada” trazia o alemão romântico; a saga “Os Nibelungos” (1924) realçava o heroísmo dos germânicos; “Dr. Mabuse” (1922) refletia o alemão do pós-Guerra. Mas seus dois filmes mais celebrados ainda estavam por vir: o distópico “Metropolis” (1927) e “M, o Vampiro de Düsseldorf” (1931), sua obra-prima.
Mas a maior parte da carreira de Lang foi em Hollywood, para onde ele migrou com a ascensão nazista nos anos 30 (sua mãe era de origem judaica). Mas se sua fase americana não foi tão inspirada como a alemã, ao menos rendeu alguns filmes de muito alto nível, como “Vive-se Uma Só Vez” (1937), variante da história de Bonnie e Clyde, e “Os Corruptos” (1953), um dos grandes noirs da década.
Henry Fonda em "Vive-se Uma Só Vez"
“Lang teve altos e baixos, com alguns grandes momentos em cada década em que trabalhou nos EUA. Mas teve dificuldades sérias na maioria dos estúdios”, diz Patrick McGilligan, autor da biografia mais completa do cineasta, “Fritz Lang: the Nature of the Beast”. “Muitos dos seus filmes americanos traziam temas e ideias de seus trabalhos anteriores, eram reconhecidamente ‘languianos’. Mas ele precisou lutar muito por isso e nem sempre conseguiu”, diz o biógrafo, ressaltando que alguns de seus filmes nos EUA foram editados à sua revelia.  
Por temas “languianos” entende-se vingança, mortes, linchamentos e a implacabilidade do destino; o cinema de Lang era altamente fatalista. Sua obra ganha ainda mais modernidade se notamos que fala muito de corrupção policial e daquilo a que estamos sujeitos quando grupos raivosos fazem julgamentos por conta própria, no calor do momento. Em tempos de “justiceiros” pelas nossas ruas, filmes como “M” e “Fúria” (1936) vêm a calhar.  
McGilligan vê na própria trajetória de Lang a motivação para a escolha de temas tão pesados e sombrios. A vida do cineasta é cheia de pontos obscuros. Um dos episódios mais turvos é a morte de Lisa Rosenthal, em 1921, sua primeira mulher, que acabara de flagrar Lang com uma amante (ele era um mulherengo incorrigível). Lisa teria se suicidado, ou talvez disparado a arma contra si sem querer, mas há chances de que o próprio Lang a tenha matado.
“Ela certamente morreu na presença dele. Se foi acidente ou assassinato, ninguém vai saber nunca, faltam evidências. Mas Lang tinha uma arma e gostava de usá-la por aí de forma melodramática”, diz McGilligan. “O caso foi abafado, e Lang prosseguiu fazendo filmes sobre homicídios que assombram o assassino. Particularmente, não acho que ele tenha sido um assassino intencional, mas ele certamente sentia culpa pelo ocorrido e canalizava esse episódio para a própria criação, mesmo quando os fatos reais eram distorcidos por um espelho”. 
McGilligan penou para retraçar a trajetória de Lang, que adorava glamourizar aspectos do próprio passado. Era com orgulho, por exemplo, que narrava (em detalhes) uma história meio épica sobre sua “fuga” da Alemanha, após ser convidado a ser o cineasta do Terceiro Reich pelo ministro da Propaganda nazista Joseph Goebbels. Lang teria recusado e, com asco, deixado o país às pressas – mas documentos desmentem essa versão, já que Lang ainda precisou retornar várias vezes à Alemanha até regularizar sua imigração.
“Não é que ele inventasse episódios, mas ele os romanceava. Mesmo como diretor, Lang era mais um adaptador que um artista original – a não ser quando trabalhava com [a ex-mulher] Thea von Harbou, que criou alguns de seus roteiros. No caso do encontro com Goebbels, os detalhes e a cronologia foram meio recriados por ele ao longo das décadas, reforçados em entrevistas. Mas o encontro de fato aconteceu”.
Algo que Lang jamais pôde falsear da própria vida era o seu comportamento tirânico nos sets. Marlene Dietrich começou a filmar “O Diabo Feito Mulher” (1952) bem animada, mas sofreu tanto no processo que chegou ao fim do longa com relações cortadas com o diretor – mais tarde, diria aos quatro ventos que Lang foi o homem mais detestável com quem já trabalhou. Peter Lorre e Spencer Tracy (e 90% de toda Hollywood) também não tinham lá belas palavras para se referir a Lang, que não media esforços para obter os efeitos que desejava. Ainda na Alemanha, ao filmar “Metropolis”, colocou em risco a vida da atriz Brigitte Helm em uma cena de incêndio só para ter um resultado mais expressivo.
“Lang tinha seus pontos fortes, mas lidar com os atores não era um deles. Conseguiu extraordinárias atuações tratando brutalmente o elenco, repetindo tomadas à exaustão”, diz seu biógrafo. “Os atores que se saíam melhor em seus filmes eram os cujos personagens ‘sofriam’ na trama. Embora haja exceções, ele não tinha leveza no convívio com astros ou técnicos. Todos estavam subordinados a seu comportamento maníaco e abusivo”.
Cena de "Coração de Apache"
Mas nem tudo é sombras no cinema de Lang. Alguns de seus filmes são até leves, como a aventura “O Tesouro do Barba Ruiva” (1955), filmada em Cinemascope (há uma famosa cena de “O Desprezo”, de Godard, em que Lang satiriza a horizontalidade dessa tecnologia: “Só serve para filmar serpentes e enterros”). E, em alguns filmes, pode-se entrever certa ternura, como sua única produção francesa, “Coração de Apache” (1934), que Lang adorava – é uma charmosa tragicomédia com atuação reluzente de Charles Boyer. “É o tipo de filme que ninguém associa a Lang, mas é um dos que mais ajuda a ter uma imagem completa de quem ele foi”, diz McGilligan.

domingo, 22 de setembro de 2013

Os Méritos de Pauline

(Por BRUNO GHETTI - caderno Ilustríssima, Folha de S.Paulo - 11/dez.2011)


Resumo A primeira biografia de Pauline Kael suscita dúvidas sobre sua honestidade intelectual -ela teria afanado estudos sobre "Cidadão Kane" de um de seus colaboradores-, mas reafirma a norte-americana como a mais célebre crítica de cinema dos Estados Unidos. Dez anos após sua morte, o lançamento desse e de dois outros livros nos EUA provam a permanência de seu prestígio.



Há 40 anos, a mais célebre crítica de cinema dos Estados Unidos, Pauline Kael (1919-2001), publicava seu artigo mais famoso. Era um detalhado estudo sobre "Cidadão Kane" (1941), espertamente intitulado "Raising Kane" (trocadilho com a expressão "to raise Cain", que significa algo como "gerar reações inflamadas").

No texto -que integra a coletânea "Criando Kane e Outros Ensaios", publicada no Brasil em 2000-, Pauline defendia que o roteirista Herman J. Mankiewicz era a força criativa por trás do filme, mais importante até que o diretor, Orson Welles (1915-85). Ela queria fazer justiça a Mankiewicz, que caíra em esquecimento, enquanto Welles entrara para a história com a reputação de gênio maldito, frequentemente reivindicando para si as principais qualidades de "Kane" e a coautoria do roteiro -embora Pauline jurasse que Welles não escrevera nem sequer uma linha do script.

Independente do quanto de justiça e veracidade "Raising Kane" trazia (o artigos foi bastante contestado na época), surgem agora evidências de que a própria Pauline atuou de modo tão pouco ético como ela acusava Welles de ter agido. A crítica teria baseado o seu artigo nos estudos realizados por outra pessoa -Howard Suber, pesquisador da UCLA (Universidade da Califórnia, em Los Angeles), que colaborou com Pauline, mas que, por fim, não foi sequer mencionado no texto final. A revelação surpreendente está em *"Pauline Kael: A Life in the Dark" [Viking, 432 págs., R$ 68,30]*, a primeira biografia da crítica, escrita pelo jornalista Brian Kellow.

"Ela roubou os estudos", diz Kellow, em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York. "Howard Suber era um professor-assistente da UCLA que pesquisava sobre 'Kane'. Pauline descobriu e o chamou para colaborar em uma publicação. De posse dos dados da pesquisa dele, nunca mais falou no assunto. Um dia, Suber abriu a [revista] 'New Yorker' e lá estava o trabalho dele, em um artigo assinado só por Pauline. Foi chocante descobrir isso porque, em geral, Pauline era uma pessoa ética", diz. Por e-mail, Suber confirmou à Folha a versão de Kellow. "As conclusões expostas no artigo são mesmo dela. Mas, de resto, diria que ela não fez pesquisa nenhuma, apenas usou o que eu forneci." Na época, o crítico e cineasta Peter Bogdanovich quis defender Suber. "Mas era muito doloroso para mim falar sobre isso. Só agora resolvi desabafar", diz o pesquisador.

Pauline Kael: odiada por muitos, imitada por vários

KAELMANIA A revelação certamente deixa uma mancha na reputação de Kael, mas a crítica dificilmente deixará de ser respeitada -até porque, ao longo da carreira, foi atacada muitas vezes pelos (diversos) detratores e conseguiu sair incólume, seguindo até hoje como a mais influente crítica americana. Prova de seu prestígio mesmo dez anos após sua morte é a atual "kaelmania" que toma conta do mercado editorial nos EUA -recentemente, além da biografia de Kellow, foram lançadas duas outras publicações relacionadas à crítica. Uma delas é a excelente antologia *"The Age of Movies: Selected Writings of Pauline Kael" [Library of America, 750 págs., R$ 97,70]*, com os textos mais importantes de Pauline (menos o longo artigo sobre "Kane", que ficou de fora por falta de espaço). O livro é organizado pelo crítico e escritor Sanford Schwartz.

A outra é *"Lucking Out" [Doubleday, 272 págs., R$ 60,90]*, livro de memórias do jornalista James Wolcott, da revista "Vanity Fair", em que Pauline, sua amiga pessoal e mentora, surge como uma personagem expressiva -ela domina quase 50 páginas do livro. Como Kellow, ele traça um retrato respeitoso escrito por um admirador, mas sem deixar de mostrar que a crítica nem sempre era uma pessoa fácil. Protegido de Pauline, Wolcott é um caso típico de "Paulette", denominação jocosa dada no meio jornalístico dos EUA aos diversos críticos surgidos nos anos 70 que imitavam o estilo kaeliano. A devoção dos "Paulettes" à inspiradora não é tão difícil de entender: os textos ferinos de Pauline demonstravam ampla cultura geral e eram peculiarmente fluidos e divertidos. Ela não seguia nenhuma linha teórica -acreditava que a força de uma crítica vinha de uma sua própria resposta emocional ao que via na tela.

"Bastava ver um filme uma vez para ela reparar em detalhes que outros críticos não notariam nem revendo em diversas ocasiões", ressalta Kellow. O conteúdo de seus textos era polêmico e até podia ser discutível, mas o prazer literário que proporcionavam era inegável. Tanto que seu livro de críticas "Deeper into Movies" (1973) foi o primeiro do gênero a ganhar um National Book Award. 

TRAJETÓRIA Pauline Kael nasceu na pequena Petaluma, Califórnia, em 1919, filha de pais judeus poloneses. Foi criada em um rancho de galinhas, mas em um meio que privilegiava o interesse pelas artes. Mas sua formação cultural se deu mesmo quando se mudou para a região de San Francisco, onde estudou filosofia e conviveu com artistas de vanguarda.

Antes de se tornar uma crítica de sucesso, Pauline penou em profissões diversas: foi costureira, cozinheira, "ghost-writer" e até cobaia de cosméticos. Segundo o biógrafo, "ela também tentou ser roteirista, dramaturga e autora de peças para rádio, mas não era muito boa nisso. Só encontrou sua voz mesmo como crítica".

A tal voz Pauline botou para fora pela primeira vez aos 33, em 1952, com uma análise (negativa) de "Luzes da Ribalta", de Charles Chaplin, na revista "City Lights". Mas sua situação financeir melhorou só dez anos depois, quando ganhou notoriedade nacional com o texto "Circles and squares", em que atacava o crítico Andrew Sarris e sua "teoria do autor" (derivação da "política dos autores", criada pelos franceses, nos anos 50). O artigo trazia características importantes da escrita kaeliana: o estilo coloquial, o gosto pela polêmica e a antipatia ao culto ao cineasta-autor -de certa forma, o texto foi um "esquenta" para a defesa do cinema enquanto arte colaborativa que ela praticaria em "Raising Kane", de 1971.

Sarris levou as críticas pelo lado pessoal e iniciou uma disputa pública com Pauline. "Ela respeitava a inteligência de Sarris, mas não o achava um bom escritor", diz Kellow. "Sarris não gostava dela. Ao entrevistá-lo para meu livro, para poupar seu tempo, sugeri uma conversa de só 15 minutos. Mas Sarris disse: 'Não tem problemas, podemos conversar por mais tempo desde que eu não precise voltar a falar dessa senhora!'".

Capa do livro

EXTREMOS Odiada por muitos, mas já com leitores fiéis, Pauline estreou em 1967 na prestigiada revista " The New Yorker", onde trabalharia até 1991, quando se aposentou ("para não ter mais que ver filmes de Oliver Stone", ela brincou na época, embora o verdadeiro motivo tenha sido o mal de Par-kinson, que a acompanharia até a morte, aos 82). Teve uma relação cordial, mas por vezes tensa, com seu editor, William Shawn, que lhe deu liberdade quase total em suas críticas -embora não gostasse dos seus coloquialismos. Seus vigorosos textos das décadas de 70 e 80 a consolidaram como grande formadora de opinião. Mesmo escrevendo para uma revista de público refinado, não escondia sua aversão a filmes muito intelectualizados e pretensiosos -dizia, por exemplo, que ver alguns longas de Robert Bresson era "algo assim como ser açoitado, vendo cada lambada se aproximando". Se John Cassavetes, Rainer Werner Fassbinder e Andrei Tarkovski não estavam entre seus preferidos, obras menos ambiciosas de Brian de Palma, Irving Kershner e Paul Mazursky lhe proporcionavam grande prazer.

Mas Pauline sabia reconhecer um grande filme. Ela foi uma das primeiras a falar, por exemplo, da importância de "Uma Rajada de Balas" (1967), de Arthur Penn, e de "Nashville" (1975), de Robert Altman. Sua análise de "O Último Tango em Paris" (1972), de Bernardo Bertolucci, foi um dos seus pontos altos (mesmo que, lida hoje, possa soar exagerada).

"Pauline às vezes tinha tendência à hipérbole, idolatrava um filme na excitação do momento, mas isso vinha do enorme amor que ela tinha pelo que fazia", diz seu biógrafo, salientando que escrever sobre cinema foi a maior paixão da vida da crítica.

A maior, mas não a única: Pauline amou muito, mas não deu sorte em seus relacionamentos -tinha tendência a se apaixonar por homens gays. Com um deles (o cineasta de vanguarda James Broughton), teve sua única filha, Gina, que Pauline criou sozinha, com grande severidade. (Gina foi uma das poucas pessoas que se recusaram a colaborar com a biografia escrita por Kellow.)

O biógrafo descreve Pauline como uma pessoa enérgica, falastrona e em geral agradável, mas competitiva e centrada em si. Era generosa com os "Paulettes", mas exigia idolatria irrestrita dos mesmos. Mas sua maior qualidade talvez fosse o humor. Certa vez, o diretor George Roy Hill, irritado com uma crítica a "Butch Cassidy" (1969), escreveu-lhe uma carta desaforada, chamando-a de "vadia miserável". Pauline se divertia com o bilhete e o mostrava aos amigos que iam à sua casa. Pouco tempo antes de morrer, a crítica encontrou Hill em um restaurante. Ao ver que o cineasta também sofria de Parkinson, Pauline se apressou em lhe dar o contato de sua massagista: "Fará maravilhas por você!".

Kellow entrevistou cerca de 160 pessoas para a biografia e teve acesso total aos arquivos pessoais da crítica. "Fiquei impressionado: ela guardou quase todas as cartas que recebeu em vida" (entre os documentos, Kellow achou os estudos de Howard Suber, mas nenhuma pesquisa da própria Pauline sobre "Cidadão Kane").

A biografia reproduz vários trechos de textos de Pauline. Uma das principais qualidades dos seus artigos é o poder de análise do que estava acontecendo no mundo e como isso influía nos filmes. Seus textos falavam sobre a época em que foram escritos, além de mostrarem quem era Pauline Kael. Certa vez, disse que nunca escreveria uma biografia: "Fiz isso ao longo dos anos". De certa forma, ela tinha razão.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013



Deus após a morte
por BRUNO GHETTI  (Folha de S.Paulo, caderno Ilustríssima - 6.jan.2013)

RESUMO Consagrado ao lado de seu irmão Jean-Pierre por filmes como "Rosetta", Luc Dardenne fez uma incursão na filosofia com ensaio sobre afetividade e existência, marcado por noções como solidariedade, simpatia e responsabilidade pelo outro. Livro e obra cinematográfica iluminam-se mutuamente.

Enquanto concebia o roteiro de "O Garoto da Bicicleta" (2011), o diretor belga Luc Dardenne, 58, teve sua mente invadida por pensamentos filosóficos. O filme (codirigido pelo irmão Jean-Pierre, seu parceiro artístico) mostra o encontro entre um menino abandonado pelo pai e uma cabeleireira que, sem razão explícita, resolve cuidar dele, dando-lhe amor e proteção.

Intrigado pela natureza dessa relação desinteressada entre uma pessoa e o "outro", por aquilo que faz alguém amá-lo e olhar por ele, Dardenne lançou-se a uma série de questionamentos sobre as relações humanas. Depois de traduzir suas conclusões em imagens (no longa), decidiu ir além: desenvolveu-as em "Sur l'Affaire Humaine" [Seuil, 190 págs., R$ 48], lançado no ano passado na França.

Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne

A partir da noção nietzschiana da "morte de Deus", Dardenne discorre sobre o medo humano de morrer, a necessidade da substituição de Deus e a importância das relações entre as pessoas. A obra apresenta conceitos filosóficos nem sempre claros para um não iniciado, mas a prosa é surpreendentemente fluida e clara.

O livro é fortemente influenciado pela ética da alteridade proposta pelo franco-lituano Emmanuel Levinas (1906-95), de quem Dardenne foi aluno na faculdade de filosofia em Louvain, em 1980. Para o belga, passado o luto pela "morte de Deus", o ser humano precisa desenvolver uma moral humana, não mais divina.

A relação com o outro se torna elemento central dessa moral, inspirada no pensamento levinasiano sobre um "eu" ético que aparece sob a injunção de um outro que clama por ser socorrido -uma demanda de não ser deixado abandonado. Como se, na falta de um Deus todo-poderoso, o "eu" (ou o "outro", dependendo do caso) assumisse atribuições "divinas".

Noções como solidariedade, simpatia e responsabilidade pelo outro são examinadas no livro, um excelente complemento aos filmes da dupla -ele esclarece e aprofunda questões só sugeridas nos extraordinários "A Promessa" (1996) e "O Filho" (2002) e nos vencedores da Palma de Ouro "Rosetta" (1999) e "A Criança" (2005).

Os irmãos Dardenne figuram hoje entre os cineastas mais influentes das últimas duas décadas: seu estilo seco, com sequências longas e a câmera colada no protagonista tem sido imitado ad infinitum (raramente com bons resultados, diga-se). Seus personagens são incansáveis guerreiros que lutam pela sobrevivência em um mundo pouco solidário. Mas, de repente, uma prova de humanidade, um toque de Graça, surge de onde menos se espera, e o ser humano já não se sente tão entregue à própria sorte.
Sobre o livro e seus pontos de contato com seus filmes, Luc Dardenne falou, por email, à Folha.

***

Folha - A ideia de "Sur l'Affaire Humaine" surgiu durante a criação do roteiro de "O Garoto da Bicicleta". Como aquela história o levou a um livro tão sério e filosófico?
Luc Dardenne - Nos dois anos de desenvolvimento do roteiro, quando estava obcecado por aquele garoto solitário, abandonado e violento, procurava palavras, olhares e gestos para ele projetando-me nele e conversando com frequência com meu irmão. Toda essa atividade me fechou em pensamentos que se ligavam a questões filosóficas que me interessam há muito tempo, como a solidão, a simpatia, a responsabilidade pelo outro, o assassinato -questões suscitadas por minhas leituras da obra de Levinas. Uma das questões que me perseguia era saber: por que o amor da personagem Samantha, uma mulher desconhecida, que surgiu por acaso, seria capaz de abrandar o sofrimento do garoto da bicicleta?

Logo no início, é evocado o célebre "Deus está morto", de Nietzsche. Mas 130 anos após o filósofo tê-lo "enterrado", Deus segue como uma espécie de obsessão entre os humanos - filósofos, inclusive. A declaração da morte teria tornado Deus ainda mais vivo?
Meu pequeno livro não é de forma alguma uma discussão sobre a morte ou sobrevivência de Deus. De certo modo, falo somente de mim, para quem Deus está morto; apenas faço ruminações, pensamentos obsessivos sobre a necessidade de consolação que tenho em mim, em minhas inervações, assim como o garoto da bicicleta, meu "alter ego". O que eu posso esperar é que esses pensamentos que me deixam obcecados sejam o sintoma de alguma coisa que ultrapassa a minha pessoa e movimente o pensamento dos outros.

Cécile de France e Thomas Doret em "O Garoto da Bicicleta":
responsabilidade pelo outro em um mundo pós-"morte de Deus"

Você sugere que Deus não está tão morto assim -há uma entidade próxima, mas terrena e humana: uma figura materna. Quem seria?
Nosso nascimento é indissociável de um pânico do que está de fora [do útero], um medo de morrer. Esse medo é abrandado quando entramos em contato com o amor infinito de um outro -uma mãe, um pai, biológico ou não- capaz de nos fazer sair de uma bolha imaginária e passar a amar o que está de fora. Necessitamos da existência de um "Deus" que nos dê um amor mais forte que a morte, uma segurança absoluta.
Tento pensar em como podemos conviver com essa necessidade, mas sem Deus -vivendo só com nosso elo com o outro humano que nos ama infinitamente e nos fez amar a vida. Mas, é claro, uma vida que não tem mais nenhuma garantia de eternidade, uma vida de mortal entre mortais.

Superado Deus, é preciso passar a uma próxima etapa: desenvolver uma moral antes humana que divina. A humanidade está ainda muito longe de chegar lá?
Questão para um adivinho, o que eu não sou. Podemos, ainda assim, dizer que o crescimento dos particularismos e das identidades religiosas hoje em dia pode nos fazer temer pelo pior. Cabe a nós resistir. O cinema pôde ser no passado uma terrível ferramenta de propaganda, de disseminação de preconceitos assassinos.
Mas ele pode também mostrar seres humanos complexos, singulares e, ao mesmo tempo, universais, que escapam a todos os preconceitos e que são capazes de sofrer pelas pessoas que também sofrem, que são capazes de ser felizes por pessoas que manifestam sua alegria de viver. O cinema se interessa pelo ser humano, qualquer que ele seja, essa é a humanidade de seu olhar.

domingo, 11 de agosto de 2013

Mulheres Apaixonadas e Delírio de Amor

Por Bruno Ghetti - site Revista Interlúdio (4.jan.2012)


É lamentável que um cineasta tão expressivo como Ken Russell tenha sido tão pouco lembrado após morrer, no último dia 27/11. Mesmo em sua Inglaterra natal, Russell era dado como um velho louco, cujo sucesso no passado não foi suficiente para que mantivesse a respeitabilidade (ao morrer, aos 84, ele se encontrava em uma espécie de limbo artístico, queixando-se de, há décadas, não conseguir verbas para seus projetos).

A chegada recente de dois de seus melhores filmes em DVD no Brasil não tem relação com a morte de Russell, mas seus fãs podem tomar a liberdade de ver os lançamentos como uma maneira de homenageá-lo. São eles "Mulheres Apaixonadas" (Versátil), de 1969, longa que o projetou internacionalmente e ainda hoje sua obra de maior prestígio, e "Delírio de Amor" (Classicline), de 1970, menos lembrado hoje em dia, mas controverso quando lançado.
O "velho louco" Ken Russell

É justa a aclamação a "Mulheres Apaixonadas": é uma ousada e bem-sucedida adaptação do livro homônimo de D.H. Lawrence, feita em um barroco hipersensualizado que impressiona pela sofisticação visual. A história se passa na Inglaterra do pós-1ª Guerra e se centra em torno de quatro personagens: as irmãs Gudrun (Glenda Jackson) e Ursula (Jennie Linden), o industrial Gerald (Oliver Reed) e seu amigo Rupert (Alan Bates). O durão Gerald inicia um romance com a liberada Gudrun, mas a falta de sintonia entre a sensibilidade de ambos e a competição de suas personalidades possessivas torna o relacionamento um fracasso. Já Rupert, embora mantenha desejos (não tão) ocultos pelo amigo, envolve-se com Ursula, que ele crê amar; mas a união heterossexual, mesmo feliz, não lhe é suficiente.

Diferentemente dos filmes futuros de Russell, aqui os personagens escapam à caricatura; são, aliás, bem complexos (e por vezes até imprecisos) e de surpreendente modernidade. O filme apresenta diversos temas relacionados às diferentes formas que cada pessoa tem de ver o amor, mas a que se sobressai é a confusão sexo-sentimental de Rupert (que Lawrence criou baseando-se em si mesmo). Seu interesse por pessoas do mesmo sexo não se limita ao desejo físico: tem natureza também espiritual. Para se sentir completo, Rupert precisa amar e ser amado por uma mulher e por um homem; os dois amores jamais concorreriam – seriam complementares. O seu drama é justamente não conseguir encontrar uma forma de exercer e receber esse amor (como convencer o objeto de sua afeição dessa via amorosa se Rupert sequer é capaz de formulá-la em palavras?). As leituras mais simplistas (do livro e do filme) reduzem a inquietação de Rupert à sua mera dificuldade de assumir essa homo/bissexualidade, mas o que Lawrence (e Russell) propõe vai além: é a existência de uma outra categoria amorosa, que escapa às rotulações básicas da hétero, bi ou homossexualidade.

"Mulheres Apaixonadas" condensa alguns dos procedimentos fílmicos que Russell utilizaria (e levaria ao extremo) até o fim da carreira, principalmente a estrutura baseada em cenas relativamente rápidas e, digamos, “descomplicadas”, que acumulam uma tensão que só vem com força à tona em sequências posteriores, mais extravagantes, de natureza catártica; estas pontuam e complementam as antecessoras em termos emocionais. E no filme, pelo menos meia dúzia dessas grandes sequências são de altíssimo nível, figurando entre as melhores da carreira do cineasta inglês (com o tempo, Russell foi se perdendo em sua obsessão pelo rococó, e seus filmes de a partir de meados dos anos 70 se afogariam na própria excentricidade, muitas vezes atingindo um lastimável mau gosto).

Alan Bates e Oliver Reed na cena mais
famosa do filme "Mulheres Apaixonadas"
Das grandes sequências do filme, uma foi tão chocante que praticamente eclipsou as demais: a cena homoerótica de luta, em que Reed e Bates se enfrentam nus, diante de uma lareira. É de fato a melhor, mas o filme traz diversas outras também memoráveis (Glenda dançando diante de um rebanho de touros ferozes; Bates em êxtase, esfregando o corpo nu em plantas ásperas; Reed dando chibatadas em seu cavalo para chamar a atenção de Glenda). São cenas vagas, ambíguas, mas é improvável que alguém fique indiferente a elas – se não são claras quanto ao seu significado diegético, fazem apelo imediato aos nossos sentidos.

Delírio de Amor

Na parte final de "Mulheres Apaixonadas", uma sequência traz Gudrun e um amante gay evocando a trágica vida do compositor Piotr Tchaikovsky, homossexual, e sua mulher, Nina. A cena (em um estilo camp uma nota acima do resto do filme) não está ali à toa: preparava terreno para o trabalho seguinte de Russell, "Delírio de Amor", que narra justamente a vida do compositor russo. O quarto longa do diretor foi lançado um ano após "Mulheres Apaixonadas" e se escora sobre a incapacidade do protagonista (vivido por Richard Chamberlain) de lidar com a própria homossexualidade, o que o leva à infelicidade. Ficam evidentes logo no início as diferenças entre Tchaikovsky e o herói atordoado de "Mulheres Apaixonadas": Rupert era um inconformista, que achava que deveria ser possível uma nova possibilidade de amar; Tchaikovsky é pura resignação, que se entrega à danação por não poder seguir as regras convencionais do amor.

Russell sabia que estava lidando com uma vertente bem mais simplificada e linear de um dos temas de "Mulheres Apaixonadas" e talvez por isso tenha compensado esse estreitamento no conteúdo no rebuscamento visual (e sonoro), que em "Delírio" é bem maior. Tudo no filme é exagerado: atuações, cenários, cortes, emprego do zoom (in e out), movimentos de câmera, imagens deformadas – não há espaço para a discrição.

Richard Chamberlain e Christopher Gable em "Delírio de Amor"
Essa estética da opulência fez com que muitos dos admiradores de seu filme anterior se afastassem de Russell, que passou a ser considerado um irresponsável, criador de um formalismo muitas vezes gratuito e desnecessário. Criticou-se também o fato de Russell trazer uma falsificação de trechos da vida de Tchaikovsky – aliás, o cineasta foi muito repreendido ao longo da carreira por exagerar fatos e inventar descaradamente situações que jamais fizeram partes das historias de seus biografados (que incluem Strauss, Mahler, Liszt e muitos outros, principalmente músicos).

Mas denota ingenuidade (ou má vontade) achar que por algum momento a intenção do diretor era mostrar uma representação fiel e factual da vida de quem quer que fosse (Russell também não o fazia sequer em seus criativos e admirados documentários para a TV inglesa, nos anos 60). A maior contribuição de Russell para o cinema – e que quase não se leu nos obituários de novembro passado – está na maneira inovadora como abordou a recriação biográfica nas telas. Para ele, a cinebiografia é uma grande estilização do que teria sido a vida da pessoa retratada. Seu cinema tem paralelos com o trabalho dos cartunistas: ele cria caricaturas de seus biografados e de situações de sua vida. Essa caricaturização nada tem de desrespeitosa: ao parodiar os dramas e paixões de seus personagens por via do exagero, joga na nossa cara o quanto somos ridículos por levarmos nossas existências a sério demais e propõe que a melhor forma de retratá-las na arte é pelo humor e o autodeboche. Por incrível que pareça, Russell foi um grande humanista, sensível como poucos às inquietações, fragilidades e imperfeições humanas.

Russell apropriava-se das trajetórias dos outros para embebedá-las com suas próprias obsessões, fazendo um misto de pastiche da biografia alheia com uma obra extremamente pessoal. Para o bem e para o mal, ao final de Delírio de Amor, o espectador não sabe praticamente nada sobre Tchaikovsky, mas sabe praticamente tudo sobre Ken Russell.


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e
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