domingo, 11 de agosto de 2013

Mulheres Apaixonadas e Delírio de Amor

Por Bruno Ghetti - site Revista Interlúdio (4.jan.2012)


É lamentável que um cineasta tão expressivo como Ken Russell tenha sido tão pouco lembrado após morrer, no último dia 27/11. Mesmo em sua Inglaterra natal, Russell era dado como um velho louco, cujo sucesso no passado não foi suficiente para que mantivesse a respeitabilidade (ao morrer, aos 84, ele se encontrava em uma espécie de limbo artístico, queixando-se de, há décadas, não conseguir verbas para seus projetos).

A chegada recente de dois de seus melhores filmes em DVD no Brasil não tem relação com a morte de Russell, mas seus fãs podem tomar a liberdade de ver os lançamentos como uma maneira de homenageá-lo. São eles "Mulheres Apaixonadas" (Versátil), de 1969, longa que o projetou internacionalmente e ainda hoje sua obra de maior prestígio, e "Delírio de Amor" (Classicline), de 1970, menos lembrado hoje em dia, mas controverso quando lançado.
O "velho louco" Ken Russell

É justa a aclamação a "Mulheres Apaixonadas": é uma ousada e bem-sucedida adaptação do livro homônimo de D.H. Lawrence, feita em um barroco hipersensualizado que impressiona pela sofisticação visual. A história se passa na Inglaterra do pós-1ª Guerra e se centra em torno de quatro personagens: as irmãs Gudrun (Glenda Jackson) e Ursula (Jennie Linden), o industrial Gerald (Oliver Reed) e seu amigo Rupert (Alan Bates). O durão Gerald inicia um romance com a liberada Gudrun, mas a falta de sintonia entre a sensibilidade de ambos e a competição de suas personalidades possessivas torna o relacionamento um fracasso. Já Rupert, embora mantenha desejos (não tão) ocultos pelo amigo, envolve-se com Ursula, que ele crê amar; mas a união heterossexual, mesmo feliz, não lhe é suficiente.

Diferentemente dos filmes futuros de Russell, aqui os personagens escapam à caricatura; são, aliás, bem complexos (e por vezes até imprecisos) e de surpreendente modernidade. O filme apresenta diversos temas relacionados às diferentes formas que cada pessoa tem de ver o amor, mas a que se sobressai é a confusão sexo-sentimental de Rupert (que Lawrence criou baseando-se em si mesmo). Seu interesse por pessoas do mesmo sexo não se limita ao desejo físico: tem natureza também espiritual. Para se sentir completo, Rupert precisa amar e ser amado por uma mulher e por um homem; os dois amores jamais concorreriam – seriam complementares. O seu drama é justamente não conseguir encontrar uma forma de exercer e receber esse amor (como convencer o objeto de sua afeição dessa via amorosa se Rupert sequer é capaz de formulá-la em palavras?). As leituras mais simplistas (do livro e do filme) reduzem a inquietação de Rupert à sua mera dificuldade de assumir essa homo/bissexualidade, mas o que Lawrence (e Russell) propõe vai além: é a existência de uma outra categoria amorosa, que escapa às rotulações básicas da hétero, bi ou homossexualidade.

"Mulheres Apaixonadas" condensa alguns dos procedimentos fílmicos que Russell utilizaria (e levaria ao extremo) até o fim da carreira, principalmente a estrutura baseada em cenas relativamente rápidas e, digamos, “descomplicadas”, que acumulam uma tensão que só vem com força à tona em sequências posteriores, mais extravagantes, de natureza catártica; estas pontuam e complementam as antecessoras em termos emocionais. E no filme, pelo menos meia dúzia dessas grandes sequências são de altíssimo nível, figurando entre as melhores da carreira do cineasta inglês (com o tempo, Russell foi se perdendo em sua obsessão pelo rococó, e seus filmes de a partir de meados dos anos 70 se afogariam na própria excentricidade, muitas vezes atingindo um lastimável mau gosto).

Alan Bates e Oliver Reed na cena mais
famosa do filme "Mulheres Apaixonadas"
Das grandes sequências do filme, uma foi tão chocante que praticamente eclipsou as demais: a cena homoerótica de luta, em que Reed e Bates se enfrentam nus, diante de uma lareira. É de fato a melhor, mas o filme traz diversas outras também memoráveis (Glenda dançando diante de um rebanho de touros ferozes; Bates em êxtase, esfregando o corpo nu em plantas ásperas; Reed dando chibatadas em seu cavalo para chamar a atenção de Glenda). São cenas vagas, ambíguas, mas é improvável que alguém fique indiferente a elas – se não são claras quanto ao seu significado diegético, fazem apelo imediato aos nossos sentidos.

Delírio de Amor

Na parte final de "Mulheres Apaixonadas", uma sequência traz Gudrun e um amante gay evocando a trágica vida do compositor Piotr Tchaikovsky, homossexual, e sua mulher, Nina. A cena (em um estilo camp uma nota acima do resto do filme) não está ali à toa: preparava terreno para o trabalho seguinte de Russell, "Delírio de Amor", que narra justamente a vida do compositor russo. O quarto longa do diretor foi lançado um ano após "Mulheres Apaixonadas" e se escora sobre a incapacidade do protagonista (vivido por Richard Chamberlain) de lidar com a própria homossexualidade, o que o leva à infelicidade. Ficam evidentes logo no início as diferenças entre Tchaikovsky e o herói atordoado de "Mulheres Apaixonadas": Rupert era um inconformista, que achava que deveria ser possível uma nova possibilidade de amar; Tchaikovsky é pura resignação, que se entrega à danação por não poder seguir as regras convencionais do amor.

Russell sabia que estava lidando com uma vertente bem mais simplificada e linear de um dos temas de "Mulheres Apaixonadas" e talvez por isso tenha compensado esse estreitamento no conteúdo no rebuscamento visual (e sonoro), que em "Delírio" é bem maior. Tudo no filme é exagerado: atuações, cenários, cortes, emprego do zoom (in e out), movimentos de câmera, imagens deformadas – não há espaço para a discrição.

Richard Chamberlain e Christopher Gable em "Delírio de Amor"
Essa estética da opulência fez com que muitos dos admiradores de seu filme anterior se afastassem de Russell, que passou a ser considerado um irresponsável, criador de um formalismo muitas vezes gratuito e desnecessário. Criticou-se também o fato de Russell trazer uma falsificação de trechos da vida de Tchaikovsky – aliás, o cineasta foi muito repreendido ao longo da carreira por exagerar fatos e inventar descaradamente situações que jamais fizeram partes das historias de seus biografados (que incluem Strauss, Mahler, Liszt e muitos outros, principalmente músicos).

Mas denota ingenuidade (ou má vontade) achar que por algum momento a intenção do diretor era mostrar uma representação fiel e factual da vida de quem quer que fosse (Russell também não o fazia sequer em seus criativos e admirados documentários para a TV inglesa, nos anos 60). A maior contribuição de Russell para o cinema – e que quase não se leu nos obituários de novembro passado – está na maneira inovadora como abordou a recriação biográfica nas telas. Para ele, a cinebiografia é uma grande estilização do que teria sido a vida da pessoa retratada. Seu cinema tem paralelos com o trabalho dos cartunistas: ele cria caricaturas de seus biografados e de situações de sua vida. Essa caricaturização nada tem de desrespeitosa: ao parodiar os dramas e paixões de seus personagens por via do exagero, joga na nossa cara o quanto somos ridículos por levarmos nossas existências a sério demais e propõe que a melhor forma de retratá-las na arte é pelo humor e o autodeboche. Por incrível que pareça, Russell foi um grande humanista, sensível como poucos às inquietações, fragilidades e imperfeições humanas.

Russell apropriava-se das trajetórias dos outros para embebedá-las com suas próprias obsessões, fazendo um misto de pastiche da biografia alheia com uma obra extremamente pessoal. Para o bem e para o mal, ao final de Delírio de Amor, o espectador não sabe praticamente nada sobre Tchaikovsky, mas sabe praticamente tudo sobre Ken Russell.


http://www.revistainterludio.com.br/?p=1769
e
http://www.revistainterludio.com.br/?p=1774

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