Mulheres Apaixonadas e Delírio de
Amor
Por Bruno Ghetti
- site Revista Interlúdio (4.jan.2012)
É lamentável que um cineasta tão expressivo como Ken Russell
tenha sido tão pouco lembrado após morrer, no último dia 27/11. Mesmo em sua
Inglaterra natal, Russell era dado como um velho louco, cujo sucesso no passado
não foi suficiente para que mantivesse a respeitabilidade (ao morrer, aos 84,
ele se encontrava em uma espécie de limbo artístico, queixando-se de, há décadas,
não conseguir verbas para seus projetos).
A chegada recente de dois de seus melhores filmes em DVD no
Brasil não tem relação com a morte de Russell, mas seus fãs podem tomar a
liberdade de ver os lançamentos como uma maneira de homenageá-lo. São eles
"Mulheres Apaixonadas" (Versátil), de 1969, longa que o projetou
internacionalmente e ainda hoje sua obra de maior prestígio, e "Delírio de
Amor" (Classicline), de 1970, menos lembrado hoje em dia, mas controverso
quando lançado.
O "velho louco" Ken Russell |
É justa a aclamação a "Mulheres Apaixonadas": é
uma ousada e bem-sucedida adaptação do livro homônimo de D.H. Lawrence, feita
em um barroco hipersensualizado que impressiona pela sofisticação visual. A
história se passa na Inglaterra do pós-1ª Guerra e se centra em torno de quatro
personagens: as irmãs Gudrun (Glenda Jackson) e Ursula (Jennie Linden), o
industrial Gerald (Oliver Reed) e seu amigo Rupert (Alan Bates). O durão Gerald
inicia um romance com a liberada Gudrun, mas a falta de sintonia entre a
sensibilidade de ambos e a competição de suas personalidades possessivas torna
o relacionamento um fracasso. Já Rupert, embora mantenha desejos (não tão)
ocultos pelo amigo, envolve-se com Ursula, que ele crê amar; mas a união
heterossexual, mesmo feliz, não lhe é suficiente.
Diferentemente dos filmes futuros de Russell, aqui os
personagens escapam à caricatura; são, aliás, bem complexos (e por vezes até
imprecisos) e de surpreendente modernidade. O filme apresenta diversos temas
relacionados às diferentes formas que cada pessoa tem de ver o amor, mas a que
se sobressai é a confusão sexo-sentimental de Rupert (que Lawrence criou
baseando-se em si mesmo). Seu interesse por pessoas do mesmo sexo não se limita
ao desejo físico: tem natureza também espiritual. Para se sentir completo,
Rupert precisa amar e ser amado por uma mulher e por um homem; os dois amores
jamais concorreriam – seriam complementares. O seu drama é justamente não
conseguir encontrar uma forma de exercer e receber esse amor (como convencer o
objeto de sua afeição dessa via amorosa se Rupert sequer é capaz de formulá-la
em palavras?). As leituras mais simplistas (do livro e do filme) reduzem a
inquietação de Rupert à sua mera dificuldade de assumir essa
homo/bissexualidade, mas o que Lawrence (e Russell) propõe vai além: é a
existência de uma outra categoria amorosa, que escapa às rotulações básicas da
hétero, bi ou homossexualidade.
"Mulheres Apaixonadas" condensa alguns dos
procedimentos fílmicos que Russell utilizaria (e levaria ao extremo) até o fim
da carreira, principalmente a estrutura baseada em cenas relativamente rápidas
e, digamos, “descomplicadas”, que acumulam uma tensão que só vem com força à
tona em sequências posteriores, mais extravagantes, de natureza catártica;
estas pontuam e complementam as antecessoras em termos emocionais. E no filme,
pelo menos meia dúzia dessas grandes sequências são de altíssimo nível,
figurando entre as melhores da carreira do cineasta inglês (com o tempo,
Russell foi se perdendo em sua obsessão pelo rococó, e seus filmes de a partir
de meados dos anos 70 se afogariam na própria excentricidade, muitas vezes
atingindo um lastimável mau gosto).
Alan Bates e Oliver Reed na cena mais famosa do filme "Mulheres Apaixonadas" |
Das grandes sequências do filme, uma foi tão chocante que
praticamente eclipsou as demais: a cena homoerótica de luta, em que Reed e
Bates se enfrentam nus, diante de uma lareira. É de fato a melhor, mas o filme
traz diversas outras também memoráveis (Glenda dançando diante de um rebanho de
touros ferozes; Bates em êxtase, esfregando o corpo nu em plantas ásperas; Reed
dando chibatadas em seu cavalo para chamar a atenção de Glenda). São cenas
vagas, ambíguas, mas é improvável que alguém fique indiferente a elas – se não
são claras quanto ao seu significado diegético, fazem apelo imediato aos nossos
sentidos.
Delírio de Amor
Na parte final de "Mulheres Apaixonadas", uma
sequência traz Gudrun e um amante gay evocando a trágica vida do compositor
Piotr Tchaikovsky, homossexual, e sua mulher, Nina. A cena (em um estilo camp
uma nota acima do resto do filme) não está ali à toa: preparava terreno para o
trabalho seguinte de Russell, "Delírio de Amor", que narra justamente
a vida do compositor russo. O quarto longa do diretor foi lançado um ano após
"Mulheres Apaixonadas" e se escora sobre a incapacidade do
protagonista (vivido por Richard Chamberlain) de lidar com a própria homossexualidade,
o que o leva à infelicidade. Ficam evidentes logo no início as diferenças entre
Tchaikovsky e o herói atordoado de "Mulheres Apaixonadas": Rupert era
um inconformista, que achava que deveria ser possível uma nova possibilidade de
amar; Tchaikovsky é pura resignação, que se entrega à danação por não poder
seguir as regras convencionais do amor.
Russell sabia que estava lidando com uma vertente bem mais
simplificada e linear de um dos temas de "Mulheres Apaixonadas" e
talvez por isso tenha compensado esse estreitamento no conteúdo no rebuscamento
visual (e sonoro), que em "Delírio" é bem maior. Tudo no filme é
exagerado: atuações, cenários, cortes, emprego do zoom (in e out), movimentos
de câmera, imagens deformadas – não há espaço para a discrição.
Richard Chamberlain e Christopher Gable em "Delírio de Amor" |
Essa estética da opulência fez com que muitos dos
admiradores de seu filme anterior se afastassem de Russell, que passou a ser
considerado um irresponsável, criador de um formalismo muitas vezes gratuito e
desnecessário. Criticou-se também o fato de Russell trazer uma falsificação de
trechos da vida de Tchaikovsky – aliás, o cineasta foi muito repreendido ao
longo da carreira por exagerar fatos e inventar descaradamente situações que
jamais fizeram partes das historias de seus biografados (que incluem Strauss,
Mahler, Liszt e muitos outros, principalmente músicos).
Mas denota ingenuidade (ou má vontade) achar que por algum
momento a intenção do diretor era mostrar uma representação fiel e factual da
vida de quem quer que fosse (Russell também não o fazia sequer em seus
criativos e admirados documentários para a TV inglesa, nos anos 60). A maior
contribuição de Russell para o cinema – e que quase não se leu nos obituários
de novembro passado – está na maneira inovadora como abordou a recriação
biográfica nas telas. Para ele, a cinebiografia é uma grande estilização do que
teria sido a vida da pessoa retratada. Seu cinema tem paralelos com o trabalho
dos cartunistas: ele cria caricaturas de seus biografados e de situações de sua
vida. Essa caricaturização nada tem de desrespeitosa: ao parodiar os dramas e
paixões de seus personagens por via do exagero, joga na nossa cara o quanto
somos ridículos por levarmos nossas existências a sério demais e propõe que a
melhor forma de retratá-las na arte é pelo humor e o autodeboche. Por incrível
que pareça, Russell foi um grande humanista, sensível como poucos às
inquietações, fragilidades e imperfeições humanas.
Russell apropriava-se das trajetórias dos outros para
embebedá-las com suas próprias obsessões, fazendo um misto de pastiche da
biografia alheia com uma obra extremamente pessoal. Para o bem e para o mal, ao
final de Delírio de Amor, o espectador não sabe praticamente nada sobre
Tchaikovsky, mas sabe praticamente tudo sobre Ken Russell.
http://www.revistainterludio.com.br/?p=1769
e
http://www.revistainterludio.com.br/?p=1774
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