quarta-feira, 14 de agosto de 2013



Deus após a morte
por BRUNO GHETTI  (Folha de S.Paulo, caderno Ilustríssima - 6.jan.2013)

RESUMO Consagrado ao lado de seu irmão Jean-Pierre por filmes como "Rosetta", Luc Dardenne fez uma incursão na filosofia com ensaio sobre afetividade e existência, marcado por noções como solidariedade, simpatia e responsabilidade pelo outro. Livro e obra cinematográfica iluminam-se mutuamente.

Enquanto concebia o roteiro de "O Garoto da Bicicleta" (2011), o diretor belga Luc Dardenne, 58, teve sua mente invadida por pensamentos filosóficos. O filme (codirigido pelo irmão Jean-Pierre, seu parceiro artístico) mostra o encontro entre um menino abandonado pelo pai e uma cabeleireira que, sem razão explícita, resolve cuidar dele, dando-lhe amor e proteção.

Intrigado pela natureza dessa relação desinteressada entre uma pessoa e o "outro", por aquilo que faz alguém amá-lo e olhar por ele, Dardenne lançou-se a uma série de questionamentos sobre as relações humanas. Depois de traduzir suas conclusões em imagens (no longa), decidiu ir além: desenvolveu-as em "Sur l'Affaire Humaine" [Seuil, 190 págs., R$ 48], lançado no ano passado na França.

Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne

A partir da noção nietzschiana da "morte de Deus", Dardenne discorre sobre o medo humano de morrer, a necessidade da substituição de Deus e a importância das relações entre as pessoas. A obra apresenta conceitos filosóficos nem sempre claros para um não iniciado, mas a prosa é surpreendentemente fluida e clara.

O livro é fortemente influenciado pela ética da alteridade proposta pelo franco-lituano Emmanuel Levinas (1906-95), de quem Dardenne foi aluno na faculdade de filosofia em Louvain, em 1980. Para o belga, passado o luto pela "morte de Deus", o ser humano precisa desenvolver uma moral humana, não mais divina.

A relação com o outro se torna elemento central dessa moral, inspirada no pensamento levinasiano sobre um "eu" ético que aparece sob a injunção de um outro que clama por ser socorrido -uma demanda de não ser deixado abandonado. Como se, na falta de um Deus todo-poderoso, o "eu" (ou o "outro", dependendo do caso) assumisse atribuições "divinas".

Noções como solidariedade, simpatia e responsabilidade pelo outro são examinadas no livro, um excelente complemento aos filmes da dupla -ele esclarece e aprofunda questões só sugeridas nos extraordinários "A Promessa" (1996) e "O Filho" (2002) e nos vencedores da Palma de Ouro "Rosetta" (1999) e "A Criança" (2005).

Os irmãos Dardenne figuram hoje entre os cineastas mais influentes das últimas duas décadas: seu estilo seco, com sequências longas e a câmera colada no protagonista tem sido imitado ad infinitum (raramente com bons resultados, diga-se). Seus personagens são incansáveis guerreiros que lutam pela sobrevivência em um mundo pouco solidário. Mas, de repente, uma prova de humanidade, um toque de Graça, surge de onde menos se espera, e o ser humano já não se sente tão entregue à própria sorte.
Sobre o livro e seus pontos de contato com seus filmes, Luc Dardenne falou, por email, à Folha.

***

Folha - A ideia de "Sur l'Affaire Humaine" surgiu durante a criação do roteiro de "O Garoto da Bicicleta". Como aquela história o levou a um livro tão sério e filosófico?
Luc Dardenne - Nos dois anos de desenvolvimento do roteiro, quando estava obcecado por aquele garoto solitário, abandonado e violento, procurava palavras, olhares e gestos para ele projetando-me nele e conversando com frequência com meu irmão. Toda essa atividade me fechou em pensamentos que se ligavam a questões filosóficas que me interessam há muito tempo, como a solidão, a simpatia, a responsabilidade pelo outro, o assassinato -questões suscitadas por minhas leituras da obra de Levinas. Uma das questões que me perseguia era saber: por que o amor da personagem Samantha, uma mulher desconhecida, que surgiu por acaso, seria capaz de abrandar o sofrimento do garoto da bicicleta?

Logo no início, é evocado o célebre "Deus está morto", de Nietzsche. Mas 130 anos após o filósofo tê-lo "enterrado", Deus segue como uma espécie de obsessão entre os humanos - filósofos, inclusive. A declaração da morte teria tornado Deus ainda mais vivo?
Meu pequeno livro não é de forma alguma uma discussão sobre a morte ou sobrevivência de Deus. De certo modo, falo somente de mim, para quem Deus está morto; apenas faço ruminações, pensamentos obsessivos sobre a necessidade de consolação que tenho em mim, em minhas inervações, assim como o garoto da bicicleta, meu "alter ego". O que eu posso esperar é que esses pensamentos que me deixam obcecados sejam o sintoma de alguma coisa que ultrapassa a minha pessoa e movimente o pensamento dos outros.

Cécile de France e Thomas Doret em "O Garoto da Bicicleta":
responsabilidade pelo outro em um mundo pós-"morte de Deus"

Você sugere que Deus não está tão morto assim -há uma entidade próxima, mas terrena e humana: uma figura materna. Quem seria?
Nosso nascimento é indissociável de um pânico do que está de fora [do útero], um medo de morrer. Esse medo é abrandado quando entramos em contato com o amor infinito de um outro -uma mãe, um pai, biológico ou não- capaz de nos fazer sair de uma bolha imaginária e passar a amar o que está de fora. Necessitamos da existência de um "Deus" que nos dê um amor mais forte que a morte, uma segurança absoluta.
Tento pensar em como podemos conviver com essa necessidade, mas sem Deus -vivendo só com nosso elo com o outro humano que nos ama infinitamente e nos fez amar a vida. Mas, é claro, uma vida que não tem mais nenhuma garantia de eternidade, uma vida de mortal entre mortais.

Superado Deus, é preciso passar a uma próxima etapa: desenvolver uma moral antes humana que divina. A humanidade está ainda muito longe de chegar lá?
Questão para um adivinho, o que eu não sou. Podemos, ainda assim, dizer que o crescimento dos particularismos e das identidades religiosas hoje em dia pode nos fazer temer pelo pior. Cabe a nós resistir. O cinema pôde ser no passado uma terrível ferramenta de propaganda, de disseminação de preconceitos assassinos.
Mas ele pode também mostrar seres humanos complexos, singulares e, ao mesmo tempo, universais, que escapam a todos os preconceitos e que são capazes de sofrer pelas pessoas que também sofrem, que são capazes de ser felizes por pessoas que manifestam sua alegria de viver. O cinema se interessa pelo ser humano, qualquer que ele seja, essa é a humanidade de seu olhar.

domingo, 11 de agosto de 2013

Mulheres Apaixonadas e Delírio de Amor

Por Bruno Ghetti - site Revista Interlúdio (4.jan.2012)


É lamentável que um cineasta tão expressivo como Ken Russell tenha sido tão pouco lembrado após morrer, no último dia 27/11. Mesmo em sua Inglaterra natal, Russell era dado como um velho louco, cujo sucesso no passado não foi suficiente para que mantivesse a respeitabilidade (ao morrer, aos 84, ele se encontrava em uma espécie de limbo artístico, queixando-se de, há décadas, não conseguir verbas para seus projetos).

A chegada recente de dois de seus melhores filmes em DVD no Brasil não tem relação com a morte de Russell, mas seus fãs podem tomar a liberdade de ver os lançamentos como uma maneira de homenageá-lo. São eles "Mulheres Apaixonadas" (Versátil), de 1969, longa que o projetou internacionalmente e ainda hoje sua obra de maior prestígio, e "Delírio de Amor" (Classicline), de 1970, menos lembrado hoje em dia, mas controverso quando lançado.
O "velho louco" Ken Russell

É justa a aclamação a "Mulheres Apaixonadas": é uma ousada e bem-sucedida adaptação do livro homônimo de D.H. Lawrence, feita em um barroco hipersensualizado que impressiona pela sofisticação visual. A história se passa na Inglaterra do pós-1ª Guerra e se centra em torno de quatro personagens: as irmãs Gudrun (Glenda Jackson) e Ursula (Jennie Linden), o industrial Gerald (Oliver Reed) e seu amigo Rupert (Alan Bates). O durão Gerald inicia um romance com a liberada Gudrun, mas a falta de sintonia entre a sensibilidade de ambos e a competição de suas personalidades possessivas torna o relacionamento um fracasso. Já Rupert, embora mantenha desejos (não tão) ocultos pelo amigo, envolve-se com Ursula, que ele crê amar; mas a união heterossexual, mesmo feliz, não lhe é suficiente.

Diferentemente dos filmes futuros de Russell, aqui os personagens escapam à caricatura; são, aliás, bem complexos (e por vezes até imprecisos) e de surpreendente modernidade. O filme apresenta diversos temas relacionados às diferentes formas que cada pessoa tem de ver o amor, mas a que se sobressai é a confusão sexo-sentimental de Rupert (que Lawrence criou baseando-se em si mesmo). Seu interesse por pessoas do mesmo sexo não se limita ao desejo físico: tem natureza também espiritual. Para se sentir completo, Rupert precisa amar e ser amado por uma mulher e por um homem; os dois amores jamais concorreriam – seriam complementares. O seu drama é justamente não conseguir encontrar uma forma de exercer e receber esse amor (como convencer o objeto de sua afeição dessa via amorosa se Rupert sequer é capaz de formulá-la em palavras?). As leituras mais simplistas (do livro e do filme) reduzem a inquietação de Rupert à sua mera dificuldade de assumir essa homo/bissexualidade, mas o que Lawrence (e Russell) propõe vai além: é a existência de uma outra categoria amorosa, que escapa às rotulações básicas da hétero, bi ou homossexualidade.

"Mulheres Apaixonadas" condensa alguns dos procedimentos fílmicos que Russell utilizaria (e levaria ao extremo) até o fim da carreira, principalmente a estrutura baseada em cenas relativamente rápidas e, digamos, “descomplicadas”, que acumulam uma tensão que só vem com força à tona em sequências posteriores, mais extravagantes, de natureza catártica; estas pontuam e complementam as antecessoras em termos emocionais. E no filme, pelo menos meia dúzia dessas grandes sequências são de altíssimo nível, figurando entre as melhores da carreira do cineasta inglês (com o tempo, Russell foi se perdendo em sua obsessão pelo rococó, e seus filmes de a partir de meados dos anos 70 se afogariam na própria excentricidade, muitas vezes atingindo um lastimável mau gosto).

Alan Bates e Oliver Reed na cena mais
famosa do filme "Mulheres Apaixonadas"
Das grandes sequências do filme, uma foi tão chocante que praticamente eclipsou as demais: a cena homoerótica de luta, em que Reed e Bates se enfrentam nus, diante de uma lareira. É de fato a melhor, mas o filme traz diversas outras também memoráveis (Glenda dançando diante de um rebanho de touros ferozes; Bates em êxtase, esfregando o corpo nu em plantas ásperas; Reed dando chibatadas em seu cavalo para chamar a atenção de Glenda). São cenas vagas, ambíguas, mas é improvável que alguém fique indiferente a elas – se não são claras quanto ao seu significado diegético, fazem apelo imediato aos nossos sentidos.

Delírio de Amor

Na parte final de "Mulheres Apaixonadas", uma sequência traz Gudrun e um amante gay evocando a trágica vida do compositor Piotr Tchaikovsky, homossexual, e sua mulher, Nina. A cena (em um estilo camp uma nota acima do resto do filme) não está ali à toa: preparava terreno para o trabalho seguinte de Russell, "Delírio de Amor", que narra justamente a vida do compositor russo. O quarto longa do diretor foi lançado um ano após "Mulheres Apaixonadas" e se escora sobre a incapacidade do protagonista (vivido por Richard Chamberlain) de lidar com a própria homossexualidade, o que o leva à infelicidade. Ficam evidentes logo no início as diferenças entre Tchaikovsky e o herói atordoado de "Mulheres Apaixonadas": Rupert era um inconformista, que achava que deveria ser possível uma nova possibilidade de amar; Tchaikovsky é pura resignação, que se entrega à danação por não poder seguir as regras convencionais do amor.

Russell sabia que estava lidando com uma vertente bem mais simplificada e linear de um dos temas de "Mulheres Apaixonadas" e talvez por isso tenha compensado esse estreitamento no conteúdo no rebuscamento visual (e sonoro), que em "Delírio" é bem maior. Tudo no filme é exagerado: atuações, cenários, cortes, emprego do zoom (in e out), movimentos de câmera, imagens deformadas – não há espaço para a discrição.

Richard Chamberlain e Christopher Gable em "Delírio de Amor"
Essa estética da opulência fez com que muitos dos admiradores de seu filme anterior se afastassem de Russell, que passou a ser considerado um irresponsável, criador de um formalismo muitas vezes gratuito e desnecessário. Criticou-se também o fato de Russell trazer uma falsificação de trechos da vida de Tchaikovsky – aliás, o cineasta foi muito repreendido ao longo da carreira por exagerar fatos e inventar descaradamente situações que jamais fizeram partes das historias de seus biografados (que incluem Strauss, Mahler, Liszt e muitos outros, principalmente músicos).

Mas denota ingenuidade (ou má vontade) achar que por algum momento a intenção do diretor era mostrar uma representação fiel e factual da vida de quem quer que fosse (Russell também não o fazia sequer em seus criativos e admirados documentários para a TV inglesa, nos anos 60). A maior contribuição de Russell para o cinema – e que quase não se leu nos obituários de novembro passado – está na maneira inovadora como abordou a recriação biográfica nas telas. Para ele, a cinebiografia é uma grande estilização do que teria sido a vida da pessoa retratada. Seu cinema tem paralelos com o trabalho dos cartunistas: ele cria caricaturas de seus biografados e de situações de sua vida. Essa caricaturização nada tem de desrespeitosa: ao parodiar os dramas e paixões de seus personagens por via do exagero, joga na nossa cara o quanto somos ridículos por levarmos nossas existências a sério demais e propõe que a melhor forma de retratá-las na arte é pelo humor e o autodeboche. Por incrível que pareça, Russell foi um grande humanista, sensível como poucos às inquietações, fragilidades e imperfeições humanas.

Russell apropriava-se das trajetórias dos outros para embebedá-las com suas próprias obsessões, fazendo um misto de pastiche da biografia alheia com uma obra extremamente pessoal. Para o bem e para o mal, ao final de Delírio de Amor, o espectador não sabe praticamente nada sobre Tchaikovsky, mas sabe praticamente tudo sobre Ken Russell.


http://www.revistainterludio.com.br/?p=1769
e
http://www.revistainterludio.com.br/?p=1774

sábado, 10 de agosto de 2013


DUAS VIDAS
Por BRUNO GHETTI (revista online Trópico - 15.jun.2010)

Biógrafo de Godard e Truffaut, o historiador Antoine de Baecque compara o cinema e a existência dos dois diretores

Caroline Dim e Jean-Claude Brialy em "Une Histoire
d'Eau", curta dirigido por Godard e Truffaut


O historiador e crítico francês Antoine de Baecque (1962) não era sequer nascido quando a França e o mundo foram tomados de assalto pelas inovações dos jovens cineastas da Nouvelle Vague. No entanto, ele é hoje uma das pessoas que mais estudaram, refletiram e escreveram sobre esse movimento cinematográfico, desencadeado em 1959, com o lançamento de “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, e “Acossado”, de Godard.

Além de ter sido por três anos editor da revista "Cahiers du Cinéma", celeiro dos críticos-cineastas que fariam a revolução nouvelle-vaguiana no fim dos anos 50, De Baecque escreveu as principais biografias de Truffaut (1932-1984) e Godard (1930). É também autor de “La Nouvelle Vague – Portrait d’Une Jeunesse” (Retrato de uma Juventude, 1998), entre outros vários livros.

Para as duas biografias, De Baecque realizou uma meticulosa e obsessiva pesquisa documental, fazendo inúmeras entrevistas e consultando toda sorte de periódicos e um vasto conjunto de cartas pessoais.

Em 1996, o historiador lançou "François Truffaut - Uma Biografia" (Ed. Record), livro co-escrito com Serge Toubiana. Há alguns meses, publicou na França "Godard" (ed. Grasset, ainda não lançado no Brasil), um calhamaço de quase mil páginas sobre o diretor de “O Demônio das Onze Horas” (Pierrot Le Fou).

Entre uma e outra biografia, De Baecque escreveu o roteiro de "Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague", documentário de Emmanuel Laurent sobre o movimento, em cartaz em São Paulo.
“Truffaut sempre quis mostrar a sua vida para todos, no cinema, enquanto Godard sempre fez questão de esconder a sua”, diz De Baecque na entrevista a seguir, onde fala sobre o documentário, os diretores biografados e, evidentemente, sobre seu tema preferido: a Nouvelle Vague.

*

Truffaut e Godard foram cineastas e pessoas bastante diferentes entre si. O senhor vê pontos em comum na obra e na vida de ambos?
Antoine De Baecque: Eles fizeram filmes bem diferentes, mas acredito que suas obras se encontram em alguns pontos. E também possuem aspectos biográficos em comum. Os dois eram grandes amigos, se conheceram muito jovens e fizeram parte de um mesmo grupo que frequentava os cinemas e depois escrevia sobre os filmes. Esses jovens viviam em coletividade, criaram uma comunidade. Truffaut e Godard eram muitos próximos.
Truffaut era uma espécie de líder do grupo, embora fosse mais novo. Ao mesmo tempo, era muito atencioso e cuidou de associar Godard –e também Chabrol, Rivette e outros– à sua experiência cinéfila.
Penso que o que mais os aproxima é o fato de o cinema ter salvado a vida de ambos. Truffaut teve uma infância difícil, quase se tornou um delinquente. O cinema permitiu que ele ocupasse a sua vida, se encontrasse, se tornasse adulto com a ajuda dos filmes.
Para Godard, o cinema também foi uma salvação, embora ele fosse de família mais rica. A sua escolha do cinema foi algo consciente, um ato pensado de iconoclastia, de rompimento com sua cultura e os seus laços familiares.
Foi uma escolha existencial. Ele elegeu uma arte considerada menor e se dedicou ao cinema justamente por ele ser desprezado. A ambos, de maneiras distintas, o cinema permitiu que se tornassem adultos.
Os dois começaram a filmar na mesma época e se ajudaram muito no início da carreira. Truffaut deu dinheiro a Godard para fazer “Acossado”. Ambos realizavam filmes bem diferentes, mas tinham muita admiração pela obra um do outro, até meados dos anos 60.
Foi principalmente Truffaut que sempre deixou isso muito claro. Godard também tinha uma profunda afeição e muito interesse pelos filmes de Truffaut.

Terá sido por isso que Godard escolheu Jean-Pierre Léaud, ator que foi praticamente criado por Truffaut, para alguns de seus próprios filmes?
De Baecque: Sim. Acho que a escolha de Léaud foi uma maneira de homenagear Truffaut. Godard pegou emprestado um ator criado pelo amigo. Embora fizesse personagens bem diferentes com cada diretor, Léaud se tornou uma espécie de ser comum ou de criação comum de ambos.


Godard com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg
nas filmagens de "Acossado" (1960)
Em 1958, Truffaut e Godard co-dirigiram um curta, “Une Histoire d’Eau” (Uma História da Água). Depois, em 1959, Truffaut contribuiu com o roteiro de “Acossado”. A partir do fim dos anos 60, eles seguiram caminhos bem distintos e chegaram a brigar. Qual dos dois, no seu modo de ver, manteve a trajetória mais coerente?
De Baecque: Truffaut, é inegável. Ele era um cineasta que até podia fazer um filme que negava o anterior, mas, ao mesmo tempo, cada um deles se unia ao que o antecedera. Juntos, todos constituem uma obra total.
O exemplo maior é a vida do personagem Antoine Doinel, que é mostrada numa série de filmes, desde a pré-adolescência até a idade adulta, sempre com muita coerência.
Truffaut também era muito coerente em suas declarações, na maneira de considerar sua vida e de vivê-la.
Godard, por sua vez, é um homem da ruptura. Entre 1967 e 1968, resolveu quebrar a imagem de principal vedete do cinema francês que exercera por toda a década de 60. Opta por se refugiar no anonimato, em sua militância política. Faz um exílio interior –rompendo com sua vida e seu cinema.
Também foi a partir daí que houve a ruptura entre os dois amigos. E foi por iniciativa de Godard que o rompimento aconteceu. Ele escreveu uma carta a Truffaut em 1973, repreendendo-o por não ter mudado com Maio de 1968 –afinal o mundo havia se transformado e, para Godard, não se poderia mais continuar vivendo e fazendo filmes da mesma maneira. A carta gerou um forte desentendimento, que fez os dois diretores romperem definitivamente.

Eles nunca mais se falaram?
De Baecque: Nunca mais. Nem se cumprimentaram. Houve até uma tentativa –oportunista, aliás-, da parte de Godard, em 1980, quando ele pensou num livro de entrevistas com ambos. Truffaut, porém, se recusou a participar e morreu sem voltar a falar com Godard.
A carta que Truffaut recebeu em 1973 foi muito dura, mas ele tratou de responder também com virulência. Em uma resposta de 20 páginas muito violenta, atacou Godard, acusando-o de vender a imagem de um homem que combatia grandes causas, mas era ao mesmo tempo extremamente egoísta e sempre tinha por único objetivo se auto-valorizar.
A visão de Godard traçada por Truffaut era forte, cruel e até caricatural, mas com alguns pontos bem justos. Estou certo de que Godard reconheceu muitas das acusações de Truffaut. A partir dali, ficaram estabelecidas duas maneiras muito distintas de considerar o cinema.

Na sua opinião, é possível dizer qual dos dois foi o mais importante para o cinema?
De Baecque: Para a história do cinema, foi Godard. Ele inventou um modo novo de fazer filmes e foi mais influente quanto à forma. Sua influência foi enorme, em todo o mundo.
Truffaut é também muito conhecido mundo afora, até por atingir mais intimamente o público. As pessoas se reconhecem em seu cinema autobiográfico, são tocadas pela verdade da palavra de Truffaut e sua generosidade. Eu diria que o cinema de Truffaut cria uma identificação mais forte, enquanto que o cinema de Godard exerce uma influência mais poderosa.

Os estilos dos diretores da Nouvelle Vague são bastante distintos. Há algum outro ponto em comum entre todos eles, fora serem "autores"?
De Baecque: Esse é o ponto que une todos os diretores da Nouvelle Vague. Eles são autores, a direção reflete a personalidade do cineasta, mesmo que eles contem histórias tão diferentes e de maneiras tão diversas. Eles chegam até mesmo a fazer cinemas opostos. Entretanto, sempre se vê nos filmes a personalidade do cineasta –eis o ponto comum aos diretores da Nouvelle Vague.

Por que Louis Malle _relevante diretor que começou a filmar na mesma época da Nouvelle Vague_ nunca foi incorporado oficialmente ao grupo? Teria sido por não o considerarem um “autor”?
De Baecque: É uma explicação. Seus filmes, de certa maneira, dão a impressão de que poderiam ter sido feitos por outros diretores -embora alguns sejam bem pessoais.
Malle teve também um itinerário biográfico distinto, com períodos de vida e de cinema muito contrastantes. Não é possível notar um fio condutor em sua obra, perceber a presença, a personalidade de Malle. Ele gostava, por exemplo, de confrontar seu cinema com o cinema americano, o indiano, com o documentário...

Os jovens cineastas da Nouvelle Vague idolatravam diretores americanos ou que filmavam nos EUA, como Alfred Hitchcock. Porém, Hitchcock fazia filmes muito diferentes dos realizados por eles: só filmava em estúdios, com estrelas famosas, sem improvisos e com pouca liberdade de movimentos de câmera. Não é um paradoxal esse apreço por Hitchcock?
De Baecque: Acho que isso pode ser explicado pelo contexto dos anos 50, quando Hitchcock foi descoberto na França. Para os jovens críticos e diretores da época, ele era um contra-exemplo muito forte do chamado “cinéma de qualité” (cinema de qualidade), realizado na França de então.
De certa maneira, eles consagraram Hitchcock como o primeiro autor, como se fosse o pai daquela geração. Notaram a mão autoral de Hitchcock na direção de seus filmes, o que foi uma percepção formidável!
A direção, a forma, eis o que conta em Hitchcock –ainda que os personagens sejam interpretados por estrelas, que sejam filmes de estúdio. Um olhar apenas basta para saber que se trata de um filme de Hitchcock. São obras muito pessoais, como as de Nicholas Ray, Samuel Fuller e outros autores americanos da época.
Os jovens franceses viram essa forma de liberdade suprema que é a liberdade da forma. Esse apreço por Hitchcock foi um escândalo, pois, nos anos 50, gostar de seus filmes era motivo de piada, raiva, incompreensão. Ele não era considerado um artista, mas um “money maker” (fazedor de dinheiro).
Na verdade, penso que os jovens cineastas inventaram um pouco Hitchcock como autor. Por vezes, o que dizem sobre ele é verdade –percebe-se isso na tela; por vezes, parece mais uma estratégia para permitir que se tornem eles mesmos.

Você escreveu as biografias de Truffaut e Godard. Qual das duas vidas lhe pareceu mais interessante?
De Baecque: O roteiro de “Truffaut, Godard e a Nouvelle Vague” foi feito entre as duas biografias, quando eu passava de uma personalidade para a outra, de um grupo de arquivos para o outro.
A vida de ambos é interessante. A de Godard é mais diversa, mais rica, pela maneira como ele fez seu cinema, pela forma como ele lidou com a política, a sociedade, a publicidade e o amor. A vida de Truffaut foi mais regrada, sempre muito centrada sobre seu próprio cinema.

E, além disso, Truffaut morreu jovem...
De Baecque: Sim, tem isso também. Ele morreu aos 52, e Godard continua vivendo quase 30 depois, com muito mais experiências. São duas vidas apaixonantes, mas diferentes, sem a mesma intensidade. E o mais curioso: Truffaut sempre quis mostrar a sua vida para todos, no cinema, enquanto Godard sempre fez questão de esconder a sua.

Truffaut orienta Jean-Pierre Léaud no
set de "Duas Inglesas e o Amor" (1972)
Qual é o melhor e qual é o pior filme de cada um deles?
De Baecque: Para mim, o melhor filme de Truffaut é “Duas Inglesas e o Amor” (1972) e o pior é “A História de Adèle H.” (1976). Quanto a Godard, para mim seu filme mais bonito é “O Demônio das Onze Horas” (1965) e o pior é... (pausa). Ah sim... (risos) É “Cuide da Sua Direita” (1987), um filme que não vale a pena ver.

O que você acha dos filmes recentes de Godard? Viu “Film Socialisme”?
De Baecque: Sim, vi “Film Socialisme” no Festival de Cannes. É seu ultimo filme, seu testamento. É, às vezes, impressionante; outras vezes, é sombrio. Mas achei muito tocante. Godard tenta fazer coisas que ele fazia antes, mas as realiza, sobretudo no meio do filme, com uma forma cinematográfica mais lenta, mais suave, como se quisesse parar o mundo de hoje.
O filme emociona por sua riqueza, por estar muito dentro do mundo atual, no começo e no fim. E, de repente, no meio do filme, tudo muda. É apaixonante, mesmo que seja pouco visto –há 20 anos os filmes de Godard praticamente não são mais vistos.
Os três filmes dos anos 2000 dirigidos por ele ("Elogio ao Amor, de 2001; "Nossa Música", de 2004; e "Film Socialisme", de 2010) são bem diferentes uns dos outros. Ele volta a colocar o risco no seu cinema. Muitas coisas sumiram –eles ficaram bem menos engraçados que antes. Mas jamais perderam a contemporaneidade. Godard segue com raízes nos anos 60, mas extremamente atual.
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3195,1.shl

quinta-feira, 8 de agosto de 2013


O 'chefão' do cinema brasileiro
Por BRUNO GHETTI, do Rio - (Valor Econômico - 3.jun.2013)

É quase impossível falar do cinema brasileiro dos últimos 50 anos sem passar, direta ou indiretamente, pelo nome de Luiz Carlos Barreto. O produtor foi peça chave do cinema novo, nos anos 1960, e teve importância decisiva na criação da Embrafilme, distribuidora estatal de filmes nas duas décadas seguintes. Viabilizou obras essenciais de Glauber Rocha (1939-1981), Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues, ao mesmo tempo em que produzia longas-metragens que levavam milhões às salas. Nos anos 1990, emplacou duas produções brasileiras entre os indicados ao Oscar de filme estrangeiro. E em todos esses anos, participou ativamente das discussões de políticas culturais no Brasil.

Aos 85 anos, Barretão, como é conhecido no meio artístico, celebra os 50 anos de fundação da produtora LC Barreto. A empresa financiou mais de 80 filmes, marcos históricos do cinema brasileiro, como "Terra em Transe" (1967), de Glauber, e "Bye Bye, Brasil" (1979), de Diegues, e muitos sucessos de público, como "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), do filho Bruno Barreto, o primeiro longa nacional a superar a marca dos 10 milhões de espectadores - recorde batido apenas em 2010 com "Tropa de Elite 2", de José Padilha.
Clóvis Bornay em "Terra em Transe"

Hoje em dia, embora com produções mais modestas em termos estéticos e de bilheteria - o mais recente foi "Lula, o Filho do Brasil" (2009), dirigido por Fábio, filho mais novo do produtor -, a LC Barreto segue em plena atividade. O próximo filme a ser lançado é "Flores Raras", de Bruno Barreto, que estreia em 16 de agosto, sobre a história de amor entre a poeta americana Elisabeth Bishop e a arquiteta e paisagista carioca Lota de Macedo Soares.

A longevidade da empresa mostra que, em alguns casos, é possível viver de cinema no Brasil. O segredo do sucesso? "Não acho que podemos dizer que somos um sucesso...", diz Barreto, sem muita convicção na própria modéstia. Em seguida, explica melhor: "Somos eficientes. Nossa preocupação é fazer, mas fazer sempre o melhor. E entregar, porque filme que fica parado no meio do caminho é nosso fantasma. Então a palavra é "entregar"", diz, agora em tom mais convincente.

A disciplina é marca forte no estilo de produção de Barreto. Ele costuma dizer que cinema é uma "operação artístico- militar". "Uma equipe precisa trabalhar com uma hierarquia que tem de ser respeitada - do diretor ao boy. Existe uma autodisciplina [entre os profissionais], e tudo tem que ser feito com consciência. Há até, como nos quartéis, uma ordem do dia que precisa ser seguida."

Para falar de sua empresa, Barreto recebeu a reportagem em seu apartamento, no bairro de Laranjeiras (zona sul carioca), com vista para o Pão de Açúcar. Em um ponto da sala, uma mesa expõe símbolos religiosos e foto do filho Fabio, em "estado de consciência mínima" desde 2009, quando sofreu acidente de carro e teve traumatismo craniano - ele receberá novo tratamento em breve.

Antes de a entrevista começar, Barreto pede desculpas ao repórter para fazer uma ligação. Ao telefone, confirma um jantar em sua casa com o ministro dos Esportes, Aldo Rebelo. A ligação com o poder não é de hoje: Barreto conheceu e manteve conversas políticas com vários presidentes, quase sempre em relações amistosas. Seus detratores, aliás, já o reprovaram exatamente por sua capacidade de "ficar bem" com quem está no poder - foi criticado, por exemplo, ao produzir uma biografia de Lula na época da eleição de Dilma Rousseff. Mas seu bom trânsito nas altas cúpulas já teve efeitos positivos para o cinema como um todo. Seu prestígio diante dos militares permitiu a criação da Embrafilme, que deu um impulso à produção cinematográfica nacional nos anos 1970.

"Lançamos mão de recursos próprios e de financiamentos bancários. Em 50 anos de empresa, nunca paramos por um dia."
"A ditadura pregava o nacionalismo. Os militares queriam formar uma empresa de exportação de filmes brasileiros - mas isso ia virar uma agência de turismo. Nós conseguimos convencer o governo de que aquilo não era o que o cinema brasileiro precisava naquele momento, que era se solidificar e se impor no próprio mercado", afirma.

Barreto nasceu na cidade cearense de Sobral, em 1928, e foi criado com dificuldades pela mãe (o pai deixou a família quando ele tinha três anos). Até a adolescência, só pensava em jogar bola, mas com os anos foi se interessando por política (foi comunista na juventude) e pelo jornalismo. Aos 19 anos, mudou-se para o Rio, onde conseguiu um emprego que mudaria sua vida: repórter fotográfico para a lendária revista "O Cruzeiro". Ali, conheceu e clicou personalidades de diversas áreas, de Pelé a Che Guevara (1928-1967), passando por Marlene Dietrich (1901-1992). Conheceu também o dono da revista, Assis Chateaubriand (1892-1968), de quem absorveu o espírito empreendedor, a tendência à polêmica e o carisma. "Poderia fazer um filme sobre ele só com as minhas lembranças."

No início dos anos 1950, conheceu uma jovem pianista, Lucy, de quem jamais se separou. Com sua outra grande paixão, o cinema, só se ligaria com força após 1961, quando conheceu Glauber Rocha. O cineasta baiano incentivou o novo amigo a entrar para a área, e Barreto logo assinaria o roteiro de "O Assalto ao Trem Pagador" (1962), de Roberto Farias, e a inovadora direção de fotografia de "Vidas Secas" (1963), de Nelson Pereira dos Santos.

Barreto se interessava por filmes voltados para a realidade brasileira, principal diretriz do cinema novo, e virou um dos mais atuantes do movimento. Largou o jornalismo em 1963, quando se lançou como produtor para viabilizar o documentário "Garrincha, Alegria do Povo" (1963), do amigo Joaquim Pedro de Andrade (1932 - 1988).

"Na época, produzíamos muitas coisas ao mesmo tempo. "Vidas Secas", "Garrincha", "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" [1965, de Roberto Santos] e "O Padre e a Moça" [1966, de Joaquim Pedro] foram feitos quase simultaneamente. Hoje, a fórmula econômica adotada no cinema brasileiro é ineficaz e até prejudicial, porque é filme a filme. Empresas com vários projetos, que poderiam tocá-los, têm de parar e esperar", diz, referindo-se à dependência de muitos produtores de recursos públicos.

Luiz Carlos Barreto, o Barretão
Barreto também faz captação em editais, mas é um dos poucos que podem se dar ao luxo de concluir filmes mesmo sem dinheiro público (caso de "Lula"). Nem tanto por dinheiro em caixa, mas por seu crédito na praça. "Tenho capacidade de endividamento da minha empresa. Quando vejo que o processo de captação não está dando suficientemente para levar o filme nos [nossos] parâmetros de qualidade artística e industrial, aí recorro a linhas de crédito de bancos." Em muitos filmes, usou economia familiar - caso de "Flores Raras", que custou R$ 13 milhões. "Lançamos mão de recursos próprios e de financiamentos bancários. Em 50 anos de empresa, nunca paramos por um dia que fosse as filmagens." Com estreia em 16/8, "Flores Raras" é o novo filme da produtora de Barretão e traz Miranda Otto e Glória Pires.

Desde o início, a LC Barreto funciona em esquema familiar. Barreto e Lucy comandaram a empresa até os anos 2000, quando Paula, filha do casal, se uniu a eles na chefia da produtora. "Trabalhar em família é mais difícil porque você acaba trabalhando no escritório e em casa. Tem horas que cansa, a gente quer se desligar. Não deu nem tempo de a gente transformar essa firma familiar em uma empresa propriamente dita", diz. "Já era tempo de tentar torná-la mais profissionalizada do ponto de vista de gestão. Sob a perspectiva da qualidade, está altamente profissionalizada; mas a gestão, não digo que seja amadora, mas é autodidata."
A família também controla outra razão social, a Filmes do Equador, que trabalha em conjunto com a LC Barreto (a primeira capta recursos, enquanto a segunda executa a produção). Hoje, produzem longas, filmes institucionais e especiais de TV. A sede funciona em um casarão de dois andares em Botafogo, zona sul carioca. O acervo da empresa fica em outro local, na zona oeste da cidade. "A casa de Botafogo é área preservada. Queremos fazer um centro cultural com espaço para receber alunos de cinema e estagiários, mostrar como se faz um planejamento de um filme."

No mês passado, Bruno Barreto começou as filmagens do longa "Crô", com o personagem cômico da novela da Rede Globo "Fina Estampa" (2011- 2012). No momento, a produtora tem também quatro salas alugadas em São Paulo. No total, a LC Barreto tem cerca de 25 funcionários fixos, a maior parte na administração. Mas o número aumenta muito na época de filmagens. "Em "Flores Raras", tivemos 120 pessoas trabalhando, entre motoristas, cozinheiros, técnicos... Contando com os indiretos, um filme gera de 300 a 400 empregos."

A renda dos filmes nas bilheterias conta muito, mas a fonte de renda da produtora é basicamente a exploração de seu (vasto) acervo, sobretudo na exibição para a TV a cabo. Barreto tem o copyright de 45 dos longas que produziu. "Isso é uma renda vegetativa, digamos assim. Às vezes dá para segurar [as despesas] só com isso, outras vezes não. O mercado internacional deveria ser não uma prioridade total, mas uma coisa importante para a gente. No exterior, você não vê o dinheiro: é quase sempre roubado. Se tivesse recebido tudo o que "Dona Flor" rendeu pelo mundo, eu estaria até emprestando para o Fundo Setorial [risos]".

José Wilker e Betty Faria
em "Bye Bye Brasil"
O produtor conseguiu controlar a renda do longa apenas na Argentina e nos EUA porque abriu escritórios locais. "Fundamos uma empresa nos EUA, a Carnaval Films, em 1978. Lançamos o filme nós mesmos no mercado. Com o dinheiro, conseguimos produzir outros filmes, como o "Bye Bye, Brasil"."

Barreto também é um dos sócios do Canal Brasil, mas se dedica na maior parte do tempo à sua produtora. Ali, às vezes as tarefas se misturam, mas geralmente Lucy se ocupa da análise dos roteiros. Barreto fica mais atento às outras etapas. "Acredito mais é na coisa do "fazer". O produtor tem que estar presente permanentemente. Não é só um assinador de cheque: tem que ser um coautor."
Barreto acredita em cinema autoral - grande parte dos longas que produziu na vida seguem essa linha -, mas não pensa em um filme como atividade individual. "É algo artístico, mas também industrial. Um escritor pode se isolar e escrever. Um cineasta, por mais que queira ser apenas artista, no fundo é uma peça fundamental de um processo maior."

A filosofia produtiva de Barreto sempre caminhou no rumo do estabelecimento de uma indústria cinematográfica brasileira. Defende um cinema nacional competitivo, capaz de ganhar o mercado externo. "[Franklin] Roosevelt dizia: "Onde vão nossos filmes vão nossos produtos". O cinema é a grande arma interna de formação de consciência nacional nos EUA e de difusão e assimilação de costumes americanos pelo mundo. Isso não é culpa deles: é nossa, a gente permite isso. Não é questão de proibi-los, mas de impor coisas nossas."

Barreto diz que gasta 70% do seu tempo na militância da política do setor. No ano passado, defendeu até o fim a polêmica gestão da ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda. "A irmã do Chico [Buarque]? Sofreu sabotagem por parte do corpo de funcionários do ministério. Não tinha experiência, mas estava levando as coisas." Também aprova a sucessora, Marta Suplicy. "Está tendo uma atuação brilhante, cobra coisas básicas que estão lá paradas há muito tempo."

Ao rever a própria trajetória, Barreto tem alguns arrependimentos. Um deles é não ter produzido a cinebiografia sobre Cazuza (que ele viu crescer). Outro foi ter perdido a chance de contar a história da Cidade de Deus antes de Fernando Meirelles. Orgulha-se, porém, que dois filmes dos filhos, "O Quatrilho" (1995), de Fabio, e "O que É Isso, Companheiro?" (1997), de Bruno, tenham ficado entre os cinco finalistas no Oscar de filme estrangeiro. Ele afirma que o interesse pela estatueta seria, antes de tudo, estratégico. "O Oscar é uma jogada de marketing, não um certificado de qualidade. Ele te dá um trânsito maior, para negociar os direitos etc. Se um dia conseguirmos, ótimo. Mas isso não vai querer dizer que o cinema brasileiro melhorou.

Visita íntima aos anos 70


Por Bruno Ghetti | Para o Valor, de São Paulo (Valor Econômico - 26.abr.2013)


Nada foi como antes depois de maio de 1968. Ou talvez seja o contrário: tudo continuou quase igual. Ainda é difícil, 45 anos depois, estabelecer com precisão o saldo dos eventos que levaram às ruas uma juventude que, embalada pela luta por melhoras no sistema educacional francês, acabou achando que poderia mudar o mundo.
Talvez por isso, a ideia de recompor um retrato daquele tempo (e os anos imediatamente seguintes) tem sido tão sedutora à arte. Especialmente ao cinema, que em geral tem abordado o tema em tom saudosista - como "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci -, às vezes beirando a idealização - como "Amantes Constantes", de Philippe Garrel. O mais recente filme sobre a época, "Depois de Maio", que estreia neste fim de semana no Brasil, parece, no entanto, feito com a preocupação de evitar cair em uma coisa ou na outra.
Dirigido pelo francês Olivier Assayas (da celebrada série "Carlos"), o filme se passa já no início dos anos 1970. Na ressaca pós-68, quando a juventude francesa começava a se dar conta de que a "revolução" talvez não tivesse tido os resultados esperados, o jovem desenhista Gilles se vê pressionado a decidir entre o engajamento político, diante de patrulhas ideológicas de todos os lados, e as realizações pessoais - dilema, aliás, comum entre a juventude da época. Inclusive o próprio Assayas, que tem no seu protagonista uma espécie de alter ego.
"Não é exatamente um filme autobiográfico. Mas é um filme de geração, que mostra que um indivíduo, por mais particular que seja, não pode se tornar ele mesmo se não passar pelo movimento coletivo da história, que não é apenas a sua", diz Assayas, em entrevista ao Valor.
Clément Métayer em cena de "Depois de Maio" 

Assayas tinha só 13 anos em 1968, mas viveu com intensidade os anos que se seguiram. Já havia sentido por duas vezes necessidade de abordar essa época em suas obras. A primeira foi em 1994, quando dirigiu o ótimo "Água Fria" (primo não muito distante de "Depois de Maio"), sobre dois adolescentes em crise. A outra foi sob forma de ensaio (publicado como livro em 2005), "Une Adolescence dans l'Après-Mai", que foi como uma matriz do longa.i a fundo o modo como eu vivenciei aquele tempo, em parte pelo engajamento político, que era compartilhado por todos, de outra parte pela contracultura. Havia uma certa tensão entre essas duas correntes, e minha geração ficou no fogo cruzado entre ambas. Escrevendo, essas coisas voltaram à minha cabeça, e eu pensei que, no cinema, a época nunca tinha sido tratada da forma que eu achava apropriada", diz o diretor.
"Depois de Maio" mostra uma geração movida por ideais elevados, que discutia temas profundos nos intervalos entre filmes, livros e canções de uma época singularmente fértil no terreno da cultura. Os jovens do filme são fotogênicos e os figurinos e cortes de cabelo setentistas são valorizados por uma direção de fotografia solar. Ainda assim, o tom do filme nunca é de glamourização.
"Não tenho nostalgia daquela época. O peso ideológico que restringia a liberdade de pensamento era enorme. Havia um dogmatismo político que estava muito longe da realidade que vivíamos. Não lastimei quando os anos 70 acabaram, principalmente por essa questão ideológica", diz Assayas.
"A cultura era mais viva. Mas também havia coisas insuportáveis, como aqueles solos de guitarra que duravam 15 minutos"
Mas ele também via muita coisa bela, como a rejeição ao materialismo e uma grande fé no futuro, coisas que hoje em dia, para ele, parecem ingênuas, mas que na época eram muito valorosas. "A cultura era mais viva. Mas também havia coisas insuportáveis, como aqueles solos de guitarra que duravam 15 minutos, ou os de bateria, que não acabavam nunca [risos]... Fora algumas músicas new age, que eram muito chatas!"
Assayas tem uma obra eclética, com notável habilidade para manejar uma câmera de forma naturalmente fluida. É hoje um dos cineastas franceses mais respeitados fora de seu país, sobretudo no mundo anglo-saxônico, onde passou a ser cultuado após "Irma Vep" (1996), sobre os bastidores da produção de um filme B.
Assim como Léos Carax ("Holy Motors") e Claire Denis ("Trouble Every Day"), o diretor fez seu primeiro longa ("Désordre") nos anos 1980, pertencendo à primeira geração do que alguns críticos chamam de "jeune cinéma français" (jovem cinema francês), movimento que se desenharia com mais nitidez na década seguinte (com o surgimento de nomes como Arnaud Desplechin, Xavier Beauvois e Bruno Dumont). São todos donos de obras muito pessoais, netos da nouvelle vague dos anos 1960, mas que foram influenciados sobretudo por nomes como Maurice Pialat, Jean Eustache e Philippe Garrel, da geração posterior à de Jean-Luc Godard e François Truffaut. "Na década de 1980, éramos isolados, tentando fazer um cinema moderno em um contexto que era, antes de mais nada, o fim de uma coisa pós-nouvelle vague. Tínhamos os mesmos valores, mas quando comecei a fazer filmes, tinha a impressão de estar só", relembra.
O diretor Olivier Assayas no set de filmagem

Como seu alter ego do filme, Assayas queria ser artista plástico, mas o amor pelo cinema o fez mudar de rumo. Dirigiu seu primeiro curta, "Copyright", em 1978, chamando a atenção de críticos da prestigiosa revista "Cahiers du Cinéma", que o convidaram a integrar o expediente da publicação. "Escrevi sobre filmes entre 1980 e 1985, para mim foi uma escola de cinema. Antes, tinha vontade de filmar, mas me sentia meio ignorante sobre o assunto. Na revista, conversei com cineastas, vi filmes de difícil acesso e tive contato com as pessoas que entendiam muito sobre cinema, como [os então editores] Serge Daney e Serge Toubiana."
Afiado ao analisar os filmes dos outros, Assayas reconhece ser incapaz de julgar os seus: "É impossível. Quando termino um filme, revejo inúmeras vezes para resolver questões técnicas, a ponto de chegar um instante em que não consigo mais vê-lo. Sempre esperei que, com o passar do tempo, pudesse rever meus filmes como se tivessem sido dirigidos por outra pessoa. Mas não consigo: ao ver as cenas, o que me vem à mente são os bastidores de cada cena. Não há distanciamento".
Por meio de seu cinema, Assayas sempre externou seu interesse pela diversidade de culturas, sobretudo no mundo globalizado pós-internet - em seus filmes, viaja-se bastante e fala-se em várias línguas. O diretor tem particular fascínio pela Ásia (foi inclusive casado com a chinesa Maggie Cheung, sua musa em alguns filmes), mas talvez seu olhar se desloque para outra região do planeta em breve.
"Sempre me interessei pelo presente da história, me chama a atenção que a Europa não seja mais o lugar onde ela ocorre. Por isso filmei na Ásia, onde o mundo se transforma. Mas sempre me interessei pelo Brasil, que tem essa força, é hoje uma potência. Isso pode ser inspirador a um cineasta. Espero realmente poder fazer um filme aí algum dia, digo isso com total sinceridade."

http://www.valor.com.br/cultura/3101292/visita-intima-aos-anos-70#ixzz2bR6zvHT1
Veruschka – um perfil
Por Bruno Ghetti – revista ELLE (ed. 286 – março 2012)

A top no auge
“Você é linda /É quase colorida”, cantava Jorge Ben, em 1965, à sua musa, a modelo alemã Veruschka, ícone dos anos 1960, famosa pela silhueta esguia, as pernas longas e os lábios carnudos. Exuberante, tinha um olhar impessoal, talvez melancólico, que a tornava uma figura misteriosa.

Quatro décadas mais tarde, a ex-modelo lança sua autobiografia, mostrando que a observação de Jorge Ben foi de extrema sensibilidade: de fato, sua vida tinha elementos cinzentos demais para que uma mulher tão linda fosse colorida por inteiro. Em “Mein Leben” [minha vida, em alemão] (editora Dumont Buchverlag), Veruschka fala de sua terrível infância, da perda trágica do pai, das recorrentes crises de depressão e até de tentativas de suicídio. Mas também relembra histórias incríveis, com os bastidores de quem viveu intensamente uma das épocas mais empolgantes da moda. O livro, por enquanto, existe apenas em alemão (por ora sem previsão de lançamento no Brasil), mas a modelo falou com exclusividade a ELLE sobre alguns trechos.
“As pessoas me conhecem pela aparência, nunca pensaram que havia uma vida por trás das imagens. Mas eu estava viva! Achei que chegou o momento de falar o que se passou comigo. Mostrar que as coisas não são e não foram apenas glamour”, diz a alemã, hoje aos 72.

Uma das tops mais famosas de sua época, Veruschka diz hoje ter encontrado a serenidade, mas que penou por anos com uma insônia crônica e crises de pânico, chegando a querer por fim à própria vida. “Tive vários episódios depressivos ao longo da minha vida. Seguido a momentos de muito sucesso, vinham grandes crises de depressão, eu descrevo isso no meu livro. Às vezes eu não conseguia lidar mesmo com coisas simples. Cheguei ao ponto de não querer sair de casa, tudo o que eu fazia era com um enorme esforço. Mas se você supera esses momentos extremos, depois as coisas voltam ao normal. Escrevi o livro também para passar essa mensagem para as pessoas.”

Fazendo terapia, Veruschka entendeu que talvez sua melancolia tenha relação com sua difícil infância. Ela nasceu Vera von Lehndorff, em 1939, na cidade alemã de Königsberg (hoje Kaliningrado, na Rússia), meses antes da eclosão da Segunda Guerra. Seu pai era um conde milionário inimigo de Adolf Hitler que, em 1944, tramou um frustrado plano de assassinato ao líder nazista. Como castigo, morreu enforcado. A pequena Vera e suas duas irmãs foram afastadas da mãe, indo para a zona infantil de um campo de concentração – a família voltaria a viver unida só bem depois da guerra. “Tive uma infância terrível, muito difícil. Só não cheguei a passar fome, mas enfrentei enormes dificuldades”, diz Veruschka.

Na adolescência, a alemã tinha vergonha de ser tão alta (1,83m) e dos pés grandes (ela fez cirurgia para diminuir dois números em seus sapatos), mas um dia percebeu que seu exotismo poderia ser usado a seu favor. No fim dos anos 50, foi ser modelo em Paris, depois em Nova York, mas o sucesso não veio, e Vera quase abriu mão da carreira. Foi então que teve a grande sacada: procuraria os melhores fotógrafos para um book, investiria em uma atitude mais autêntica, blasé, querendo agradar menos que as outras modelos, e adotaria o intrigante nome de Veruschka. “Decidi que queria fazer algo grande. „Se for fazer isso, que seja para ter sucesso‟, eu me dizia. Sempre priorizei minha voz interior, não o que os outros diziam. Criei a partir de mim mesma uma personagem, que muitas pessoas achavam distante, misteriosa. Mas que sempre era eu mesma.” A tática deu certo, e a jovem se tornou habituée nas capas das principais revistas de moda.

Veruschka e David Hemmings em
cena icônica de "Blow Up" (1966)
O auge da fama viria em 1966, quando atuou em “Blow Up”, de Michelangelo Antonioni. O filme mostrava um fotógrafo arrogante (inspirado em David Bailey) que se dedica a decifrar um mistério. Veruschka aparece (como ela mesma) em duas cenas memoráveis; em uma delas, faz poses sensuais para o fotógrafo – a sequência é ainda hoje considerada uma das mais eróticas do cinema.

Além de Antonioni, Veruschka trabalhou com outros grandes artistas, como Salvador Dalì e Andy Warhol. Tornou-se a maior modelo do mundo, rivalizando apenas com Twiggy. A top inglesa, apesar de sua forma esquálida, era de mais imediata identificação com as jovens da época, simbolizando a garota urbana, a “it girl” que todas queriam ser. Já a alemã grandalhona representava uma sofisticação inacessível; seus editoriais pendiam muito mais para o artístico que para o consumível. “Absolutamente, meu trabalho de modelo era parte de meu trabalho artístico. Sempre vi as coisas pelos olhos de um artista.”

Diferentemente das outras modelos, Veruschka se envolvia no processo de criação dos editoriais de moda, o que nem sempre agradava os fotógrafos e editores. “Eu gostava de colaborar, dava opiniões. Havia fotógrafos, como [Richard] Avedon, por exemplo, com quem se trabalhava sempre em conjunto. Mas alguns morriam de medo de mim, de eu
controlar a sessão de fotos [risos].” Mesmo a amiga Diana Vreeland, lendária editora de moda, nem sempre gostava da atitude da top. “Tínhamos um bom convívio, colaboramos muito juntas, mas ela não gostava muito de como eu posicionava meus olhos na hora das fotos. Ela implicava quando meu olhar passava direto pela câmera e ia para o espaço.”
Veruschka e a saharienne de YSL

Algumas imagens de editoriais com Veruschka se tornaram verdadeiros ícones, como a que traz a top
usando um casaco estilo saharienne de Yves Saint Laurent na selva (clicada pelo então namorado Franco Rubartelli). Muitas das imagens dessa época, aliás, podem ser observadas em luxuoso livro da editora Assouline, “Veruschka” (pode ser comprado no site www.assouline.com), que traz imagens incríveis da modelo clicada por nomes como Richard Avedon, Irving Penn e Steven Meisel.

“Eu tive a sorte de viver os anos 60, quando as coisas aconteciam, havia um sentido geral de revolução. Eu jamais poderia fazer hoje coisas que fazia. A maquiagem e até meu cabelo, era eu quem decidia como seriam. Hoje em dia isso não existe. Eu me diverti bastante com essas coisas”, diz Veruschka.

Em 1972, a modelo praticamente abandonou a carreira, em parte devido a uma briga com Grace Mirabella, então editora de moda mais poderosa do mundo. “Ela quis influenciar meu visual, que eu tivesse um estilo que se parecesse mais comercial, mais ligado à mulher moderna da época, no início dos anos 70. Ela queria deixar de lado as coisas malucas que a Diana Vreeland tinha em mente. Ela me disse, gentilmente: „Você deveria cortar os cabelos e tentar parecer mais feliz diante da câmera‟. Eu não quis, achei melhor parar por ali. Eu achava na época que eu deveria ter o poder sobre minha própria imagem.”
Veruschka decidiu então trabalhar como artista plástica, especializando-se em um estilo de fotografia da qual foi pioneira na década anterior, baseada na transfiguração, em que se camuflava pintando o corpo com as cores dos ambientes onde as fotos seriam tiradas, misturando-se a eles. Fez também alguns filmes e diversas fotoperformances, muitas delas travestida de homem.

Hoje em dia, ela tem uma vida tranquila, morando sozinha (nunca se casou nem teve filhos) em um apartamento em Berlim. Fez apenas uma plástica – “nos olhos, nos anos 90, mas jamais farei outra” – e acompanha muito pouco a moda por achar que nada de original é criado hoje em dia. “Nunca fui de acompanhar a moda com muito rigor. Sempre fiz meus looks e minhas coisas, que, no fim, acabaram virando moda. Eu fui, por exemplo, uma das primeiras a usar minissaia – também porque eu tinha pernas muito longas, então a saia ficava muito curta, sempre acima dos meus joelhos”, ela diz, aos risos.

“Não gosto muito da moda de hoje, de coisas como os saltos altos demais – as modelos não conseguem mais andar direito, com medo de cair! A moda se move em círculos: sempre tem coisas dos anos 60 e 70 inspirando as criações. Os anos 60 foram realmente a última vez quando se criou coisas totalmente novas para vestir. Alguma coisa também foi criada nos 70, até o fim dos anos 80. Mas depois disso, acabou”, diz, com um certo saudosismo. Apesar de todas as dificuldades que enfrentou, Veruschka parece ter mais lembranças boas que ruins de seu passado.


http://elle.abril.com.br/materia/ex-modelo-alema-veruschka-fala-sobre-anos-de-ouro-na-moda-e-depressao-680175.
Jean-Claude Carrière psicografa Buñuel
Por BRUNO GHETTI, de Pariscaderno Ilustríssima (Folha de S.Paulo - 26.jun.2011)


Nas derradeiras páginas de "Meu Último Suspiro", autobiografia de Luis Buñuel (1901-83) [trad. André Telles, Cosac Naify, 376 págs., R$ 59], o cineasta entregava um sonho: queria, após sua morte, despertar a cada dez anos para ler jornais e atualizar-se das coisas do mundo antes de iniciar novo repouso de uma década.

Luís Buñuel e Jean-Claude Carrière
Fiel ao estilo que marcou sua produção, o devaneio do diretor espanhol acaba de se materializar nos fotogramas de "Meia-Noite em Paris", de Woody Allen, e nas letras do francês Jean-Claude Carrière, 79, seu roteirista preferido e coautor daquele volume de memórias --o cineasta tinha menos traquejo com as palavras do que com as imagens e só se convenceu da pertinência do projeto ao ler um capítulo esboçado pelo parceiro.


Dos raros roteiristas a jamais acomodar-se à sombra dos cineastas com quem trabalhou ±a lista inclui Godard, Malle, Wajda e Forman--, Carrière acaba de lançar na França "Le Réveil de Buñuel" (o despertar de Buñuel) [Odile Jacob, 288 págs., R$ 50], romance humorístico em que o cineasta "acorda" quase 30 anos depois de sua morte para contemplar uma realidade bem diferente daquela que deixara ao partir. Na ficção, é o próprio Carrière quem se encarrega de apresentar o (não tão) admirável mundo novo ao visitante ilustre.

Coautor de seis filmes de Buñuel (entre eles "A Bela da Tarde", de 1967, e "O Discreto Charme da Burguesia", de 1972), Carrière conheceu o espanhol na intimidade. Daí esse "Réveil" ser um exercício casado de memória e criatividade.

As reações de Buñuel são desenhadas ora em torno de frases que ele efetivamente disse em vida, ora a partir de suposições do amigo. O resultado emula os roteiros da dupla, combinando inventividade, inteligência e, como não poderia deixar de ser, surrealismo.
Carrière foi, nos anos 80, um dos criadores da Fémis, a mais importante escola de cinema francesa (alma mater de François Ozon, por exemplo), mas raramente sentou-se à cadeira de diretor. Ele recebeu a Folha em sua casa, no bairro parisiense de Montmartre.
*
Capa do livro
Folha - Em "Meu Último Suspiro", Buñuel afirma que gostaria de ressuscitar a cada dez anos para ler jornais e saber o que aconteceu no tempo em que se ausentou. Mas o senhor o fez esperar quase 30 anos. Por quê?
Jean-Claude Carrière - Na verdade, o projeto do livro já existe faz mais de dez anos. Mas sempre que eu decidia escrever, algo importante acontecia no mundo, como o 11 de Setembro. Então, fui adiando. O ideal seria escrever daqui a uns dois anos, mas, até lá, talvez seja eu que não esteja mais vivo ±já tenho quase 80 anos...
Passados 28 anos de sua morte, Buñuel ainda está muito próximo a mim.


Como o sr. escreveu as falas dele em "Le Réveil..."? Inventou-as ou recorreu a frases que ele lhe disse?
A maior parte do que ele diz no livro é reprodução do que me falou ainda em vida. Guardo dois cadernos enormes com anotações das coisas que Buñuel me dizia sobre vários assuntos.
Tentei reproduzir a maneira peculiar como ele falava, em um francês muito correto, pontuado por expressões de seu gosto, como "canaille" (canalha).


O livro traça um perfil paradoxal de Buñuel: o de um sujeito bem-humorado, mas extremamente pessimista...
Sim. Era uma mistura curiosa de enorme generosidade e bondade com um ódio profundo pelo homem. Dizia detestar a espécie, mas amar as pessoas. Buñuel tinha pavor de multidão, o que não o impedia de ser uma pessoa sociável.


Às vezes, o expediente de "ressuscitar" Buñuel dá a impressão de ser um pretexto para percorrer temas e episódios-chave da humanidade nas últimas três décadas, sobretudo no que diz respeito a política, religião e tecnologia. Existe essa intenção subjacente?
Existe. Com o livro quis falar de todos esses assuntos e, ao mesmo tempo, contar passagens do meu convívio com Buñuel que não eram de conhecimento público. Também fui guiado pelo interesse em saber a opinião dele sobre o mundo de hoje. Me concentrei em quatro grandes eixos temáticos.
O primeiro seria a queda do comunismo --a gente não imagina o quanto o comunismo era importante para a geração do Buñuel. O segundo foi a Aids, doença que surgiu pouco antes da morte dele --acho interessante tratar do assunto porque ele conheceu os "15 anos maravilhosos" de liberação sexual, entre os fins dos anos 60 e o início dos 80.
O terceiro eixo foi a questão da internet e do progresso eletrônico. E o último, o terrorismo islâmico --os espanhóis têm uma relação muito forte com o assunto, pela própria história deles, que ficaram tanto tempo sob domínio islâmico na península Ibérica.


Segundo o crítico René Prédal, os seis filmes de Buñuel cujo roteiro o sr. coassinou constituem um caso à parte na obra dele, mas são, ao mesmo tempo, "buñuelianos ao extremo". O sr. acha que conseguiu deixar uma marca pessoal nos filmes que fizeram juntos? Qual?
Não sei, mas de uma coisa tenho certeza absoluta: eu o encorajei a fazer filmes. Por várias vezes, ele quase se aposentou, mas eu o estimulava a fazer mais um filme.
Ele chegou a um ponto na carreira em que as pessoas se perguntavam: "O que Buñuel pode fazer agora?". Eu o ajudei a seguir uma direção mais irônica, com obras mais estranhas. Ele ficava reticente, meio desconfiado.


  O cliente asiático e sua estranha caixa, em "A Bela da Tarde"
Há uma coleção de cenas insólitas e desconcertantes nos filmes que vocês fizeram juntos. Por exemplo, a caixa do cliente asiático no bordel de "A Bela da Tarde", cujo conteúdo nunca é revelado, ou a sequência de "O Discreto Charme da Burguesia" na sala de jantar que, de repente, vira um palco de teatro. O que é invenção do senhor e o que foi concebido por Buñuel?
É difícil dizer. Essas cenas do teatro a que você se refere foram ideia minha. Já tinha proposto a ele algumas vezes, mas Buñuel se recusava, dizendo que era uma situação impossível demais, muito "carrièresca". Ele só aceitou, aliás, porque a cena fazia parte de um sonho de um personagem.

Quanto ao objeto da caixa de "A Bela da Tarde", realmente não me lembro de quem veio. Muita gente achou que a cena mostrando o conteúdo tinha sido acidentalmente cortada da versão final do filme... Às vezes, quando perguntavam a Buñuel o que havia lá dentro, ele respondia: "É uma fotografia do senhor Carrière. Por isso as prostitutas ficam aterrorizadas". [risos] Mas era proposital não mostrar nada.

Buñuel dizia que um filme sem um bom roteiro não pode ser bom. O sr. se ressente do fato de os roteiristas serem tão menos reconhecidos do que os diretores?
Não. O diretor é aquele reizinho que fica sentado na sua cadeira, mas que também não pode ser outra coisa. Um cineasta pode dirigir ótimas peças ou escrever excelentes livros, mas jamais será totalmente reconhecido em outra área.
Desde o início, escolhi não me tornar diretor, indo no sentido inverso dos outros jovens da minha geração. Preferi experimentar um campo de trabalho mais amplo, desde o início com a preocupação de entender o que era a linguagem cinematográfica.
As pessoas costumam achar que um roteirista é um romancista fracassado, um escritor de segundo time, mas, na verdade, seu ofício é como o de escrever em outra língua. É por isso que escritores conhecidos e talentosos, como Michel Houellebecq e Bernard-Henri Lévy, quando escrevem para o cinema, fazem coisas inacreditáveis, sem a menor relação com a linguagem cinematográfica.


Qual é a principal lembrança que o sr. carrega do trabalho com Buñuel?
Eu me lembro da solidão. Solidão a dois. Períodos longos, longe de tudo, das mulheres, dos amigos. Face a face, todo o dia, durante as refeições, procurando chegar a uma concentração total. Ficar meses assim é algo extremamente difícil de suportar após um certo tempo [risos].



Ele era uma pessoa difícil de convencer?
Era bem difícil. Quando você está diante de Buñuel, está no nível mais alto; ele exige o seu máximo, disponibilidade e abertura total. Não há espaço para fraqueza.
Mas não era de forma alguma uma pessoa com quem fosse difícil conviver. Era bom, engraçado. Tinha 30 anos a mais do que eu; na época, eu tinha certas vontades que ele já não tinha [risos]. Mas, para mim, não tinha problema. O trabalho tinha um nível de exigência que eu raramente vi depois.