segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Cenas de um casamento
Por Bruno Ghetti | Para o Valor, de São Paulo (6.jul.12)
No cinema, é relativamente comum diretores usarem suas mulheres como musas. Muitas tiveram tanta importância na criação artística dos maridos que ajudaram a formatar uma parte expressiva de suas obras - as carreiras de Roberto Rossellini, John Cassavetes e Woody Allen, por exemplo, poderiam ter tomado rumos bem distintos, não fossem suas parcerias com Ingrid Bergman, Gena Rowlands e Mia Farrow.
Mas poucos casais colaboraram de modo tão orgânico nas telas como Jean-Luc Godard e Anna Karina. O francês sempre teve um projeto muito pessoal de cinema, mas moldou alguns dos seus longas dos anos 1960 - sua fase mais criativa - à personalidade de Karina: o físico, o estado de espírito e até as limitações da atriz tiveram peso decisivo sobre suas opções estéticas do período. Obras como "Uma Mulher É uma Mulher" (1961), "Viver a Vida" (1962) e "Bande à Part" (1964) não teriam existido, se não fosse a presença de Karina na vida de Godard - e isso já seria o suficiente para que a atriz garantisse um espaço importante na história do cinema.
Anna Karina em "Viver a Vida" (1962)
Hoje aos 71 anos, Karina virá ao Brasil para próximo Festival de Brasília, que será realizado entre os dias 13 e 22. Ela será homenageada com uma mostra e fará um show como cantora no dia 12. "Já estive uma vez no Rio, há muitos anos. Passei momentos adoráveis", diz Karina, simpática, por telefone, em um francês já sem o sotaque dinamarquês do início da carreira. A voz também mudou: está bem mais grave, mas mantém algo do frescor e do desprendimento que a tornaram a atriz perfeita para o projeto godardiano dos anos 60.
Karina nasceu em Copenhague, em família pobre, e foi tentar a sorte como modelo em Paris aos 17, em 1957. Ela adotou o nome Anna Karina (aconselhada por Coco Chanel) e estrelou campanhas publicitárias. Foi em um comercial de sabonete que Godard a conheceu e a chamou para uma cena de "Acossado" (1960), seu primeiro longa - mas, como o papel exigia nudez, não houve colaboração. Para o filme seguinte, "O Pequeno Soldado" (1960), porém, a lábia do já apaixonado Godard deu certo: em breve, estariam juntos no mesmo set e sob o mesmo teto.
"Éramos muito jovens, eu não tinha parentes em Paris. Minha vida era Jean-Luc, Jean-Luc e Jean-Luc. Ele era meu pai, meu irmão, meu tudo. Foi meu Pigmaleão", diz a atriz. Karina logo se tornou musa da nouvelle vague e estrelou mais seis longas do marido. Em muitos, Godard incluiu cenas musicais e de dança só para agradar-lhe - algumas se tornaram antológicas, como uma em que Karina canta em "O Demônio das Onze Horas" (1965) e duas de dança em cafés de Paris (uma de "Viver a Vida", outra de "Bande à Part"). "Não havia improviso. As marcações eram precisas. Ok, não tínhamos um roteiro escrito: Jean-Luc nos explicava tudo em termos gerais e os diálogos ele escrevia em cima da hora. Mas sem chance de mudar uma palavra que fosse! E o resultado saía tão natural que ninguém imaginava que era assim", relembra.
Karina e Godard ficaram casados por sete anos, que coincidiram com o ápice da carreira de cada um. Mas a união perfeita nas telas não correspondia à da vida real: as brigas eram constantes. A ótima (e estranhamente ainda não lançada no Brasil) biografia de Godard escrita por Antoine de Baecque diz que o casamento foi marcado por infidelidades dos dois (o diretor era mulherengo, e Karina teria tido casos com os atores Maurice Ronet e Jacques Perrin) e até tentativas de suicídio de ambos. Certas cenas conjugais Godard levou para as telas. "Havia cenas inspiradas na nossa vida, mas nem tanto nos filmes em que atuei. É curioso, mas a maior parte, até frases que eu disse, Jean-Luc deu para Brigitte Bardot falar", recorda-se Karina, referindo-se a "O Desprezo" (1963), longa que mostra BB e Michel Piccoli em um casamento em crise.
A atriz diz não ter mais contato com o ex. "Ele não se relaciona com ninguém, só a atual mulher [a cineasta Anne-Marie Miéville]." Mas não ficaram mágoas, ao contrário: Karina parece sempre disposta a defendê-lo, negando, até mesmo, que ele maltratasse sua equipe para manter um clima de tensão nos sets. "Isso é um exagero. Jean-Luc podia ser ríspido, mas éramos jovens e ríamos de tudo isso depois. Ele sempre foi correto com os técnicos, pagava-lhes mais até que outros diretores. E não precisava explicar em detalhes: entendíamos o que queria, tinha uma capacidade de comunicação que nunca vi em outro diretor."
E Karina trabalhou com diversos outros diretores - alguns grandes mestres. Em 1967, atuou no injustamente esquecido "O Estrangeiro", de Luchino Visconti, adaptação da obra de Albert Camus. "Visconti era um príncipe. Quando me chamou, fiquei extasiada - eu teria sido capaz de pagar para trabalhar com ele! Pena que o filme tenha sido tão mal recebido. No Festival de Veneza, os jornalistas quase jogaram tomates em mim e [no colega de filme, Marcello] Mastroianni, a quem perguntei: 'O que vamos fazer agora?' E ele disse: 'Em último caso, nos escondemos sob a mesa' [risos]."
Em 1969, Karina flertou com Hollywood, mas deu azar - estrelou "Justine", um dos maiores fracassos na carreira de George Cukor. "Vivi instantes extraordinários com George. Lembro-me de ele me levando para casa, em Los Angeles, em seu Rolls-Royce... E sempre que ele vinha a Paris me ligava: 'Anna, não suporto mais essa comida chique francesa. Sabe onde posso comer um filé com fritas?' [risos]. Então íamos jantar e depois caminhávamos por Paris, e eu me sentia muito orgulhosa de estar ao lado dele."
Cena de "Roleta Chinesa" (1976)
Fã de Godard (apesar de certa rivalidade), Rainer W. Fassbinder concebeu "Roleta Chinesa" (1976) especialmente para Karina (em 1982, o francês retribuiria a "homenagem", pondo a musa do alemão, Hanna Schygulla, como estrela de seu "Passion"). Karina relata: "Profissionalmente, 'Roleta' foi uma boa experiência. Mas à noite, Fassbinder fazia muito barulho com seu namorado [no quarto ao lado de onde ela se hospedava]. Isso atrapalhava - uma vez não aguentei e fui dormir no jardim. Na época, ele usava muita droga. Mas no set era adorável. Mas não era lá o meu diretor preferido...".
Nos anos 80, a carreira de Anna Karina perdeu fôlego - ela passou a se dedicar às atividades de escritora, cantora e diretora. "Continuo trabalhando, mas em filmes que não chegaram ao Brasil. Dirigi um no Canadá, 'Victoria' [2008] e lancei um CD para crianças." Agora, ela prepara um livro com uma versão moderna de "A Pequena Sereia", do conterrâneo Hans Christian Andersen. Ela mantém o foco no presente, mas às vezes soa nostálgica. "Nós não nos levávamos tão a sério [nos anos 60]; estávamos felizes por fazer o que fazíamos. Não tínhamos uma atitude esnobe: éramos simples. Talvez por isso as pessoas hoje gostem tanto daqueles filmes."


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