Cenas de um casamento
Por Bruno Ghetti | Para o Valor, de São Paulo (6.jul.12)
No cinema, é relativamente comum diretores usarem
suas mulheres como musas. Muitas tiveram tanta importância na criação artística
dos maridos que ajudaram a formatar uma parte expressiva de suas obras - as
carreiras de Roberto Rossellini, John Cassavetes e Woody Allen, por exemplo,
poderiam ter tomado rumos bem distintos, não fossem suas parcerias com Ingrid
Bergman, Gena Rowlands e Mia Farrow.
Mas poucos casais colaboraram de modo tão orgânico
nas telas como Jean-Luc Godard e Anna Karina. O francês sempre teve um projeto
muito pessoal de cinema, mas moldou alguns dos seus longas dos anos 1960 - sua
fase mais criativa - à personalidade de Karina: o físico, o estado de espírito
e até as limitações da atriz tiveram peso decisivo sobre suas opções estéticas
do período. Obras como "Uma Mulher É uma Mulher" (1961), "Viver
a Vida" (1962) e "Bande à Part" (1964) não teriam existido, se
não fosse a presença de Karina na vida de Godard - e isso já seria o suficiente
para que a atriz garantisse um espaço importante na história do cinema.
Anna Karina em "Viver a Vida" (1962) |
Karina nasceu em Copenhague, em família pobre, e
foi tentar a sorte como modelo em Paris aos 17, em 1957. Ela adotou o nome Anna
Karina (aconselhada por Coco Chanel) e estrelou campanhas publicitárias. Foi em
um comercial de sabonete que Godard a conheceu e a chamou para uma cena de
"Acossado" (1960), seu primeiro longa - mas, como o papel exigia
nudez, não houve colaboração. Para o filme seguinte, "O Pequeno
Soldado" (1960), porém, a lábia do já apaixonado Godard deu certo: em
breve, estariam juntos no mesmo set e sob o mesmo teto.
"Éramos muito jovens, eu não tinha parentes em
Paris. Minha vida era Jean-Luc, Jean-Luc e Jean-Luc. Ele era meu pai, meu
irmão, meu tudo. Foi meu Pigmaleão", diz a atriz. Karina logo se tornou
musa da nouvelle vague e estrelou mais seis longas do marido. Em muitos, Godard
incluiu cenas musicais e de dança só para agradar-lhe - algumas se tornaram
antológicas, como uma em que Karina canta em "O Demônio das Onze Horas"
(1965) e duas de dança em cafés de Paris (uma de "Viver a Vida",
outra de "Bande à Part"). "Não havia improviso. As marcações
eram precisas. Ok, não tínhamos um roteiro escrito: Jean-Luc nos explicava tudo
em termos gerais e os diálogos ele escrevia em cima da hora. Mas sem chance de
mudar uma palavra que fosse! E o resultado saía tão natural que ninguém
imaginava que era assim", relembra.
Karina e Godard ficaram casados por sete anos, que
coincidiram com o ápice da carreira de cada um. Mas a união perfeita nas telas
não correspondia à da vida real: as brigas eram constantes. A ótima (e
estranhamente ainda não lançada no Brasil) biografia de Godard escrita por
Antoine de Baecque diz que o casamento foi marcado por infidelidades dos dois
(o diretor era mulherengo, e Karina teria tido casos com os atores Maurice
Ronet e Jacques Perrin) e até tentativas de suicídio de ambos. Certas cenas
conjugais Godard levou para as telas. "Havia cenas inspiradas na nossa
vida, mas nem tanto nos filmes em que atuei. É curioso, mas a maior parte, até
frases que eu disse, Jean-Luc deu para Brigitte Bardot falar", recorda-se
Karina, referindo-se a "O Desprezo" (1963), longa que mostra BB e
Michel Piccoli em um casamento em crise.
A atriz diz não ter mais contato com o ex.
"Ele não se relaciona com ninguém, só a atual mulher [a cineasta
Anne-Marie Miéville]." Mas não ficaram mágoas, ao contrário: Karina parece
sempre disposta a defendê-lo, negando, até mesmo, que ele maltratasse sua
equipe para manter um clima de tensão nos sets. "Isso é um exagero.
Jean-Luc podia ser ríspido, mas éramos jovens e ríamos de tudo isso depois. Ele
sempre foi correto com os técnicos, pagava-lhes mais até que outros diretores.
E não precisava explicar em detalhes: entendíamos o que queria, tinha uma capacidade
de comunicação que nunca vi em outro diretor."
E Karina trabalhou com diversos outros diretores -
alguns grandes mestres. Em 1967, atuou no injustamente esquecido "O
Estrangeiro", de Luchino Visconti, adaptação da obra de Albert Camus.
"Visconti era um príncipe. Quando me chamou, fiquei extasiada - eu teria
sido capaz de pagar para trabalhar com ele! Pena que o filme tenha sido tão mal
recebido. No Festival de Veneza, os jornalistas quase jogaram tomates em mim e
[no colega de filme, Marcello] Mastroianni, a quem perguntei: 'O que vamos
fazer agora?' E ele disse: 'Em último caso, nos escondemos sob a mesa'
[risos]."
Em 1969, Karina flertou com Hollywood, mas deu azar
- estrelou "Justine", um dos maiores fracassos na carreira de George
Cukor. "Vivi instantes extraordinários com George. Lembro-me de ele me
levando para casa, em Los Angeles, em seu Rolls-Royce... E sempre que ele vinha
a Paris me ligava: 'Anna, não suporto mais essa comida chique francesa. Sabe
onde posso comer um filé com fritas?' [risos]. Então íamos jantar e depois
caminhávamos por Paris, e eu me sentia muito orgulhosa de estar ao lado
dele."
Cena de "Roleta Chinesa" (1976) |
Nos anos 80, a carreira de Anna Karina perdeu
fôlego - ela passou a se dedicar às atividades de escritora, cantora e
diretora. "Continuo trabalhando, mas em filmes que não chegaram ao Brasil.
Dirigi um no Canadá, 'Victoria' [2008] e lancei um CD para crianças."
Agora, ela prepara um livro com uma versão moderna de "A Pequena
Sereia", do conterrâneo Hans Christian Andersen. Ela mantém o foco no
presente, mas às vezes soa nostálgica. "Nós não nos levávamos tão a sério
[nos anos 60]; estávamos felizes por fazer o que fazíamos. Não tínhamos uma
atitude esnobe: éramos simples. Talvez por isso as pessoas hoje gostem tanto
daqueles filmes."
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