terça-feira, 6 de agosto de 2013


O eterno charme de la Cardinale


Por Bruno Ghetti | Para o Valor, de São Paulo  (19.out.2012)

Claudia Cardinale em "Era uma Vez no Oeste" (1968)
Foi na França dos anos 1950 que Deus (enfim!) criou a mulher, e ela se chamava Brigitte Bardot. A loira francesa tornou-se uma das heroínas da juventude da época, incluindo uma adolescente tunisiana, bonita, mas tímida, que tinha o andrógino nome de Claude Cardinale. No fim daquela década, a garota de raízes sicilianas desabrochou. Curvilínea, morena, com um lindo rosto e um irresistível charme mediterrâneo, ganhou aos 19 anos um concurso de beleza. Substituiu o Claude pelo femininíssimo Claudia e se mudou para a Itália, onde virou atriz. Em poucos anos, se tornaria uma das maiores estrelas do cinema europeu, em um raro nível de celebridade, comparável ao da "ídola" Brigitte.
No início dos anos 1960, muitos viam em CC a resposta italiana ao mito BB, e ambas possuíam de fato aspectos em comum: tinham enorme magnetismo, mostravam intrigante carnalidade na tela e causavam fascínio na intelectualidade (BB foi tema de célebre ensaio de Simone de Beauvoir, enquanto CC inspirou textos de Alberto Moravia e Pier Paolo Pasolini). Mas as semelhanças parem por aí - até porque o mito BB extrapolou a esfera do cinema e se tornou um fenômeno comportamental. Claudia, por sua vez, superou a francesa em termos artísticos: correu mais riscos e fez filmes mais sofisticados, acumulando na carreira um número invejável de obras-primas - foi musa de mestres como Luchino Visconti, Federico Fellini, Mario Monicelli, Sergio Leone e Werner Herzog.
Hoje, aos 74 anos, Claudia continua em atividade. Seu mais recente filme é "O Gebo e a Sombra", do centenário português Manoel de Oliveira. A estrela virá ao Brasil no fim do mês para a apresentação do longa na Mostra Internacional de São Paulo, que começou nesta semana, e também para o receber um prêmio pela carreira. Não será a primeira vez da atriz no Brasil - já esteve por aqui (e causou furor) em 1965, para rodar um filme no Rio. Adorou. Voltaria nos anos 1980, para filmar em Manaus algumas cenas de "Fitzcarraldo", que ela considera sua "mais bela aventura".
Claudia não queria atuar: virou atriz porque desejava independência financeira. Em sua estreia no cinema italiano, na comédia "Os Eternos Desconhecidos", de Monicelli, teve pânico de não memorizar seus diálogos (embora tivesse todas as falas dubladas). Aos poucos, descobriu-se atriz e atuou em toda sorte de filmes, celebrizando-se pelos extraordinários "Oito e Meio" (1963), "O Leopardo" (1963) e "Era uma Vez no Oeste" (1968).
Fez alguns poucos filmes nos Estados Unidos, mas não se adaptou a Hollywood. E, como as grandes divas, viveu episódios trágicos: viu-se obrigada, por motivos contratuais, a fazer seu primogênito passar-se por um irmão mais novo e viveu por anos uma união problemática com o produtor Franco Cristaldi. Mas "la Cardinale" soube contornar os percalços e construir uma carreira invejável.
Essa carreira foi o foco da entrevista que a atriz concedeu, com exclusividade, ao Valor, de Paris. Ao telefone, Claudia esbanjou simpatia e charme, os mesmos que, aliados a uma beleza singular, a tornaram uma das figuras mais queridas do cinema europeu.
Valor: Sua primeira vinda ao Brasil foi em 1965, quando filmou no Rio "Uma Rosa para Todos" (de Franco Rossi). Do que se lembra do Rio dessa época?
Claudia Cardinale: Foi formidável. Era engraçado, porque com o meu físico eu passava por uma brasileira [risos]. Caminhei pelas ruas, adorei o Brasil. Estou muito feliz de retornar. Sempre gostei muito de viajar - quando eu era jovem, meu sonho era ser uma exploradora, o que consigo realizar com o meu trabalho. Gosto muito do Brasil e da América do Sul em geral. No Brasil, conheci pessoas formidáveis. Eu lembro que muitas pessoas falavam em italiano comigo.
Valor: A senhora vem para a sessão de "O Gebo e a Sombra", de Manoel de Oliveira, que tem 103 anos. Como é ser dirigida por um centenário?
Claudia: Foi impressionante. Manoel tem uma energia inacreditável. Ainda mais se você pensa que o filme foi rodado em tão pouco tempo. É como uma peça de teatro, com cenas longas que duravam mais de 40 minutos. Ele um homem muito enérgico.
Valor: O longa também traz outra lenda do cinema, Jeanne Moreau. Foi a primeira vez que contracenaram?
Claudia: Sim. É engraçado, porque, coincidentemente, quando me mudei para Paris, descobri que morava no mesmo prédio que ela. Mas nunca havíamos trabalhado juntas. Também jamais havia contracenado com Michel Lonsdale. Devo dizer que ambos são atores extraordinários.
Valor: A senhora conheceu muita gente extraordinária ao longo da carreira...
Claudia: Sim, é verdade. Afinal, já tenho 130 filmes na carreira, não é? [Risos.] E continuo a trabalhar - acabo de filmar com [o espanhol] Fernando Trueba e também com jovens cineastas em Nova York e na Espanha. Tenho continuado a conhecer muita gente, mesmo depois de tantos anos.
"Há alguns anos fui à Amazônia a um festival e foi incrível porque os índios apareceram e eu dancei com eles, sem parar, por duas horas"
Valor: Um dos encontros mais aguardados foi aquele com Brigitte Bardot, no western cômico "As Petroleiras" (1971). Havia mesmo aquela rivalidade entre BB e CC?
Claudia: A publicidade do filme dizia que o filme era "BB contra CC", a loira contra a morena. As personagens duelavam. Havia uma multidão de "paparazzi" durante as filmagens - as pessoas achavam que a gente iria realmente se matar no set [risos]. Para mim, Brigitte era a mulher mais bonita do mundo - enquanto [Marlon] Brando era o homem mais belo. Eu e Brigitte nos tornamos amigas. Na última carta que ela me escreveu, não faz tanto tempo assim, ela me chama carinhosamente de "minha querida petroleira".
Valor: A senhora é um dos símbolos da Itália, mas nasceu mesmo na Tunísia...
Claudia: Sim, na época [fim dos anos 1930] a Tunísia era cheia de imigrantes, por causa da Primeira Guerra. Eu me lembro que havia muitos russos, malteses... Tínhamos uma vizinha que era czarina [risos]. Meus pais eram de origem siciliana. Na minha casa, falávamos o francês, que é a língua do país, eu não sabia falar italiano. Lembro que, quando começaram as filmagens do meu primeiro longa, "Os Eternos Desconhecidos" [1958], eu não compreendia nada do que falavam no set. Aliás, foi só em 1963, em "Oito e Meio", que Fellini me deixou usar minha voz, sem que outra pessoa me dublasse.
Valor:
Em 1963, a senhora atuou em duas obras-primas do cinema: além de "Oito e Meio", de Federico Fellini, esteve em "O Leopardo", de Luchino Visconti. As filmagens ocorreram mais ou menos na mesma época?
Claudia: Foi bem na mesma época. Era um grande desafio porque eram dois estilos de filme, e os diretores duas pessoas muito diferentes. Com Visconti eu tinha um relacionamento muito bom, a gente se encontrava muito. Ele tinha uma ligação muito grande com o teatro e atenção às marcações. Com Fellini, não tinha roteiro. Era improviso - ele se colocava no lugar de Marcello Mastroianni e me perguntava umas coisas, e eu lhe respondia. Ele me pedia, então, para repetir o que tinha dito na hora de gravar. No filme de Fellini eu era a musa, a inspiração - era Claudia Cardinale. Aliás, Fellini sempre me dizia que eu o inspirava porque eu pertencia à África, à terra.
Valor: Uma de suas cenas mais famosas é a longa sequência do baile em "O Leopardo". Foram difíceis as gravações?
Claudia: Sim, as filmagens foram longuíssimas. Usava um corpete apertado, que machucava muito, mas não dizia nada. No fim das filmagens, Luchino viu que até sangrou onde o vestido apertava e me perguntou: "Por que você não me avisou?" E eu me lembro que lhe disse: "Mas não era a Claudia, era a Angélica [sua personagem no filme] que estava ali". Luchino me ensinou muito. Ele me dizia para adentrar um ambiente sempre com passos largos: "Não é simplesmente entrar, mas tomar posse do ambiente" [risos]. Também me ensinou a dizer com os olhos o que a boca não pode falar... Isso, aliás, me faz pensar em um dos primeiros artigos sobre mim, do Pasolini, sobre o meu olhar.
Valor: O que dizia o artigo?
Claudia: Dizia que eu tinha um olhar misterioso. Que eu nunca olhava de frente, mas sempre de lado [risos]. Alberto Moravia, que, antes de "Oito e Meio", escreveu também um livro sobre mim ["La Dea dell'Amore"]. Ele me encontrou certa vez na piazza del Poppolo, em Roma, veio ao meu encontro e decidiu escrever sobre mim. O livro era a descrição de um corpo no espaço - o meu corpo.
Valor: Uma das mais belas composições de Ennio Morricone é o tema do seu personagem em "Era uma Vez no Oeste", de Sergio Leone. É verdade que, na hora das filmagens, Leone colocava a música para ouvirem no set?
Claudia: Sim, a música ficou pronta antes das filmagens. Leone sempre a tocava para ouvirmos no set antes das gravações das cenas. Na hora de gravar em si, era em silêncio, mas sempre com a música antes. Recentemente, aliás, fui a um concerto de Morricone em Rimini, e, naturalmente, ele começou a apresentação com essa música, que é soberba.
Valor: A senhora participou das filmagens de um dos longas de produção mais problemática da história, "Fitzcarraldo" (1982), de Werner Herzog. Que lembranças tem?
CC em cena de "Fitzcarraldo" (1982)
Claudia: Foi a mais bela aventura em toda a minha vida. Filmamos no meio da Amazônia, onde quase nunca tinha nada para comer. Por outro lado, sempre havia uns macaquinhos que vinham e ficavam me abraçando [risos]. No fundo, adoro o perigo, não gosto das coisas muito simples. Há alguns anos fui à Amazônia a um festival de cinema e foi incrível porque os índios apareceram - evidentemente todos nus, só com folhas na parte da frente - e eu dancei com eles, sem parar, por duas horas. Eles me disseram que fui a única que havia filmado com eles em "Fitzcarraldo". Nunca me esqueço que, quando acabaram as filmagens, os índios se reuniram e foram até o aeroporto com um pouco de terra nas mãos e me disseram: "Leve com você". Foi uma cena linda.

Valor: A senhora fez alguns filmes em Hollywood, mas não prolongou a carreira por ali. Mas fez alguns amigos, como Rock Hudson, não?
Claudia: Fiz muitos filmes na América, fiquei ali por um bom tempo. Rock Hudson foi um dos meus grandes amigos, filmamos dois ou três filmes juntos. Na época, era um problema o fato de ele ser gay - se as pessoas descobrissem, ele não conseguiria mais trabalho. Ficamos muito amigos, fazíamos sempre as refeições juntos - eu tinha uma cozinheira italiana e morava em uma casa que Paul Newman alugava para mim. Ficávamos muito juntos, muitas vezes as pessoas achavam que éramos um casal [risos], fazíamos um pouco de propósito. Era um homem lindo, por dentro e por fora.
Valor: A senhora já saiu publicamente em defesa dos homossexuais e em causas humanitárias. Acha importante uma pessoa conhecida se envolver nesses assuntos?
Claudia: Sim. Embaixo de onde moro, todos os anos passa a Parada Gay. Eles gritam: "Claudia, você está com a gente e nós estamos com você" [risos]. Ontem [segunda-feira] à noite cheguei em casa tarde porque estava em um evento em Avignon. Sou madrinha de uma campanha contra a aids local. Também trabalho em outras causas, sou embaixadora na Unesco já há algum tempo, cuido das crianças do Camboja. Acho importante aproveitar que tenho uma voz para defender o direito dessas pessoas.
Valor: A sua beleza já a atrapalhou de alguma forma na carreira?
Claudia: Não me achava bonita quando jovem. No começo, resisti em aceitar ser atriz e fazer filmes, não entendia por que insistiam. Depois compreendi por que faziam isso: é como um homem que te paquera na rua - se você corresponde ao flerte, ele vai embora. Mas, se você se faz de difícil, ele continua atrás de você.
Valor: Já achou que isso poderia limitar sua carreira - como, por exemplo, forçando-a sempre a um mesmo tipo de personagem?
Claudia: Não, nunca aconteceu. Já fiz todo tipo de personagem. Gosto de mudar, de me transformar, e o que é interessante na minha profissão é essa possibilidade. Já interpretei até uma mulher de 90 anos. Já fui a princesa, já fui a mulher do povo, já fui a p... - algumas vezes. Já fiz de tudo e adoro me transformar.
Valor: Tem algum papel que prefira em relação aos outros?
Claudia: É difícil, mas gostei de "Caminho Amargo" [de 1961, em que vive uma prostituta], de Mauro Bolognini, mas é complicado optar por um... Eu dei muita sorte de trabalhar nos anos mágicos do cinema, na década de 1960.
Valor: Naquela época, a senhora era extremamente famosa e sofria muito assédio. Como conseguiu manter a sanidade?
Claudia: O importante nessa profissão, para seguir tanto tempo, é ter força interior. Eu, por exemplo, não tenho chofer, não tenho guarda-costas, ando sozinha pelas ruas, faço compras - e as pessoas me respeitam assim mesmo. Isso é importante, porque estar sempre ao lado de um guarda-costas não é uma vida normal! Não gosto. Vivo em Paris há quase 30 anos porque na Itália, com tantos "paparazzi", você mal pode sair de casa. Fellini já havia mostrado isso em "A Doce Vida" [risos]. Adoro a Itália, mas é em Paris que tenho uma vida tranquila.

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