quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Visita íntima aos anos 70


Por Bruno Ghetti | Para o Valor, de São Paulo (Valor Econômico - 26.abr.2013)


Nada foi como antes depois de maio de 1968. Ou talvez seja o contrário: tudo continuou quase igual. Ainda é difícil, 45 anos depois, estabelecer com precisão o saldo dos eventos que levaram às ruas uma juventude que, embalada pela luta por melhoras no sistema educacional francês, acabou achando que poderia mudar o mundo.
Talvez por isso, a ideia de recompor um retrato daquele tempo (e os anos imediatamente seguintes) tem sido tão sedutora à arte. Especialmente ao cinema, que em geral tem abordado o tema em tom saudosista - como "Os Sonhadores", de Bernardo Bertolucci -, às vezes beirando a idealização - como "Amantes Constantes", de Philippe Garrel. O mais recente filme sobre a época, "Depois de Maio", que estreia neste fim de semana no Brasil, parece, no entanto, feito com a preocupação de evitar cair em uma coisa ou na outra.
Dirigido pelo francês Olivier Assayas (da celebrada série "Carlos"), o filme se passa já no início dos anos 1970. Na ressaca pós-68, quando a juventude francesa começava a se dar conta de que a "revolução" talvez não tivesse tido os resultados esperados, o jovem desenhista Gilles se vê pressionado a decidir entre o engajamento político, diante de patrulhas ideológicas de todos os lados, e as realizações pessoais - dilema, aliás, comum entre a juventude da época. Inclusive o próprio Assayas, que tem no seu protagonista uma espécie de alter ego.
"Não é exatamente um filme autobiográfico. Mas é um filme de geração, que mostra que um indivíduo, por mais particular que seja, não pode se tornar ele mesmo se não passar pelo movimento coletivo da história, que não é apenas a sua", diz Assayas, em entrevista ao Valor.
Clément Métayer em cena de "Depois de Maio" 

Assayas tinha só 13 anos em 1968, mas viveu com intensidade os anos que se seguiram. Já havia sentido por duas vezes necessidade de abordar essa época em suas obras. A primeira foi em 1994, quando dirigiu o ótimo "Água Fria" (primo não muito distante de "Depois de Maio"), sobre dois adolescentes em crise. A outra foi sob forma de ensaio (publicado como livro em 2005), "Une Adolescence dans l'Après-Mai", que foi como uma matriz do longa.i a fundo o modo como eu vivenciei aquele tempo, em parte pelo engajamento político, que era compartilhado por todos, de outra parte pela contracultura. Havia uma certa tensão entre essas duas correntes, e minha geração ficou no fogo cruzado entre ambas. Escrevendo, essas coisas voltaram à minha cabeça, e eu pensei que, no cinema, a época nunca tinha sido tratada da forma que eu achava apropriada", diz o diretor.
"Depois de Maio" mostra uma geração movida por ideais elevados, que discutia temas profundos nos intervalos entre filmes, livros e canções de uma época singularmente fértil no terreno da cultura. Os jovens do filme são fotogênicos e os figurinos e cortes de cabelo setentistas são valorizados por uma direção de fotografia solar. Ainda assim, o tom do filme nunca é de glamourização.
"Não tenho nostalgia daquela época. O peso ideológico que restringia a liberdade de pensamento era enorme. Havia um dogmatismo político que estava muito longe da realidade que vivíamos. Não lastimei quando os anos 70 acabaram, principalmente por essa questão ideológica", diz Assayas.
"A cultura era mais viva. Mas também havia coisas insuportáveis, como aqueles solos de guitarra que duravam 15 minutos"
Mas ele também via muita coisa bela, como a rejeição ao materialismo e uma grande fé no futuro, coisas que hoje em dia, para ele, parecem ingênuas, mas que na época eram muito valorosas. "A cultura era mais viva. Mas também havia coisas insuportáveis, como aqueles solos de guitarra que duravam 15 minutos, ou os de bateria, que não acabavam nunca [risos]... Fora algumas músicas new age, que eram muito chatas!"
Assayas tem uma obra eclética, com notável habilidade para manejar uma câmera de forma naturalmente fluida. É hoje um dos cineastas franceses mais respeitados fora de seu país, sobretudo no mundo anglo-saxônico, onde passou a ser cultuado após "Irma Vep" (1996), sobre os bastidores da produção de um filme B.
Assim como Léos Carax ("Holy Motors") e Claire Denis ("Trouble Every Day"), o diretor fez seu primeiro longa ("Désordre") nos anos 1980, pertencendo à primeira geração do que alguns críticos chamam de "jeune cinéma français" (jovem cinema francês), movimento que se desenharia com mais nitidez na década seguinte (com o surgimento de nomes como Arnaud Desplechin, Xavier Beauvois e Bruno Dumont). São todos donos de obras muito pessoais, netos da nouvelle vague dos anos 1960, mas que foram influenciados sobretudo por nomes como Maurice Pialat, Jean Eustache e Philippe Garrel, da geração posterior à de Jean-Luc Godard e François Truffaut. "Na década de 1980, éramos isolados, tentando fazer um cinema moderno em um contexto que era, antes de mais nada, o fim de uma coisa pós-nouvelle vague. Tínhamos os mesmos valores, mas quando comecei a fazer filmes, tinha a impressão de estar só", relembra.
O diretor Olivier Assayas no set de filmagem

Como seu alter ego do filme, Assayas queria ser artista plástico, mas o amor pelo cinema o fez mudar de rumo. Dirigiu seu primeiro curta, "Copyright", em 1978, chamando a atenção de críticos da prestigiosa revista "Cahiers du Cinéma", que o convidaram a integrar o expediente da publicação. "Escrevi sobre filmes entre 1980 e 1985, para mim foi uma escola de cinema. Antes, tinha vontade de filmar, mas me sentia meio ignorante sobre o assunto. Na revista, conversei com cineastas, vi filmes de difícil acesso e tive contato com as pessoas que entendiam muito sobre cinema, como [os então editores] Serge Daney e Serge Toubiana."
Afiado ao analisar os filmes dos outros, Assayas reconhece ser incapaz de julgar os seus: "É impossível. Quando termino um filme, revejo inúmeras vezes para resolver questões técnicas, a ponto de chegar um instante em que não consigo mais vê-lo. Sempre esperei que, com o passar do tempo, pudesse rever meus filmes como se tivessem sido dirigidos por outra pessoa. Mas não consigo: ao ver as cenas, o que me vem à mente são os bastidores de cada cena. Não há distanciamento".
Por meio de seu cinema, Assayas sempre externou seu interesse pela diversidade de culturas, sobretudo no mundo globalizado pós-internet - em seus filmes, viaja-se bastante e fala-se em várias línguas. O diretor tem particular fascínio pela Ásia (foi inclusive casado com a chinesa Maggie Cheung, sua musa em alguns filmes), mas talvez seu olhar se desloque para outra região do planeta em breve.
"Sempre me interessei pelo presente da história, me chama a atenção que a Europa não seja mais o lugar onde ela ocorre. Por isso filmei na Ásia, onde o mundo se transforma. Mas sempre me interessei pelo Brasil, que tem essa força, é hoje uma potência. Isso pode ser inspirador a um cineasta. Espero realmente poder fazer um filme aí algum dia, digo isso com total sinceridade."

http://www.valor.com.br/cultura/3101292/visita-intima-aos-anos-70#ixzz2bR6zvHT1

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