Por Bruno Ghetti – revista ELLE (ed. 286 – março 2012)
A top no auge |
“Você é linda /É quase colorida”, cantava Jorge Ben, em
1965, à sua musa, a modelo alemã Veruschka, ícone dos anos 1960, famosa pela
silhueta esguia, as pernas longas e os lábios carnudos. Exuberante, tinha um
olhar impessoal, talvez melancólico, que a tornava uma figura misteriosa.
Quatro décadas mais tarde, a ex-modelo lança sua
autobiografia, mostrando que a observação de Jorge Ben foi de extrema
sensibilidade: de fato, sua vida tinha elementos cinzentos demais para que uma
mulher tão linda fosse colorida por inteiro. Em “Mein Leben” [minha vida, em
alemão] (editora Dumont Buchverlag), Veruschka fala de sua terrível infância,
da perda trágica do pai, das recorrentes crises de depressão e até de
tentativas de suicídio. Mas também relembra histórias incríveis, com os
bastidores de quem viveu intensamente uma das épocas mais empolgantes da moda.
O livro, por enquanto, existe apenas em alemão (por ora sem previsão de
lançamento no Brasil), mas a modelo falou com exclusividade a ELLE sobre alguns
trechos.
“As pessoas me conhecem pela aparência, nunca pensaram que
havia uma vida por trás das imagens. Mas eu estava viva! Achei que chegou o
momento de falar o que se passou comigo. Mostrar que as coisas não são e não
foram apenas glamour”, diz a alemã, hoje aos 72.
Uma das tops mais famosas de sua época, Veruschka diz hoje
ter encontrado a serenidade, mas que penou por anos com uma insônia crônica e
crises de pânico, chegando a querer por fim à própria vida. “Tive vários
episódios depressivos ao longo da minha vida. Seguido a momentos de muito
sucesso, vinham grandes crises de depressão, eu descrevo isso no meu livro. Às
vezes eu não conseguia lidar mesmo com coisas simples. Cheguei ao ponto de não
querer sair de casa, tudo o que eu fazia era com um enorme esforço. Mas se você
supera esses momentos extremos, depois as coisas voltam ao normal. Escrevi o
livro também para passar essa mensagem para as pessoas.”
Fazendo terapia, Veruschka entendeu que talvez sua
melancolia tenha relação com sua difícil infância. Ela nasceu Vera von
Lehndorff, em 1939, na cidade alemã de Königsberg (hoje Kaliningrado, na
Rússia), meses antes da eclosão da Segunda Guerra. Seu pai era um conde
milionário inimigo de Adolf Hitler que, em 1944, tramou um frustrado plano de
assassinato ao líder nazista. Como castigo, morreu enforcado. A pequena Vera e
suas duas irmãs foram afastadas da mãe, indo para a zona infantil de um campo
de concentração – a família voltaria a viver unida só bem depois da guerra.
“Tive uma infância terrível, muito difícil. Só não cheguei a passar fome, mas
enfrentei enormes dificuldades”, diz Veruschka.
Na adolescência, a alemã tinha vergonha de ser tão alta
(1,83m) e dos pés grandes (ela fez cirurgia para diminuir dois números em seus
sapatos), mas um dia percebeu que seu exotismo poderia ser usado a seu favor.
No fim dos anos 50, foi ser modelo em Paris, depois em Nova York, mas o sucesso
não veio, e Vera quase abriu mão da carreira. Foi então que teve a grande
sacada: procuraria os melhores fotógrafos para um book, investiria em uma
atitude mais autêntica, blasé, querendo agradar menos que as outras modelos, e
adotaria o intrigante nome de Veruschka. “Decidi que queria fazer algo grande.
„Se for fazer isso, que seja para ter sucesso‟, eu me dizia. Sempre priorizei
minha voz interior, não o que os outros diziam. Criei a partir de mim mesma uma
personagem, que muitas pessoas achavam distante, misteriosa. Mas que sempre era
eu mesma.” A tática deu certo, e a jovem se tornou habituée nas capas das
principais revistas de moda.
Veruschka e David Hemmings em cena icônica de "Blow Up" (1966) |
O auge da fama viria em 1966, quando atuou em “Blow Up”, de
Michelangelo Antonioni. O filme mostrava um fotógrafo arrogante (inspirado em
David Bailey) que se dedica a decifrar um mistério. Veruschka aparece (como ela
mesma) em duas cenas memoráveis; em uma delas, faz poses sensuais para o
fotógrafo – a sequência é ainda hoje considerada uma das mais eróticas do
cinema.
Além de Antonioni, Veruschka trabalhou com outros grandes
artistas, como Salvador Dalì e Andy Warhol. Tornou-se a maior modelo do mundo,
rivalizando apenas com Twiggy. A top inglesa, apesar de sua forma esquálida,
era de mais imediata identificação com as jovens da época, simbolizando a
garota urbana, a “it girl” que todas queriam ser. Já a alemã grandalhona
representava uma sofisticação inacessível; seus editoriais pendiam muito mais
para o artístico que para o consumível. “Absolutamente, meu trabalho de modelo
era parte de meu trabalho artístico. Sempre vi as coisas pelos olhos de um
artista.”
Diferentemente das outras modelos, Veruschka se envolvia no
processo de criação dos editoriais de moda, o que nem sempre agradava os
fotógrafos e editores. “Eu gostava de colaborar, dava opiniões. Havia
fotógrafos, como [Richard] Avedon, por exemplo, com quem se trabalhava sempre
em conjunto. Mas alguns morriam de medo de mim, de eu
controlar a sessão de fotos [risos].” Mesmo a amiga Diana
Vreeland, lendária editora de moda, nem sempre gostava da atitude da top.
“Tínhamos um bom convívio, colaboramos muito juntas, mas ela não gostava muito
de como eu posicionava meus olhos na hora das fotos. Ela implicava quando meu
olhar passava direto pela câmera e ia para o espaço.”
Veruschka e a saharienne de YSL |
Algumas imagens de editoriais com Veruschka se tornaram
verdadeiros ícones, como a que traz a top
usando um casaco estilo saharienne de
Yves Saint Laurent na selva (clicada pelo então namorado Franco Rubartelli).
Muitas das imagens dessa época, aliás, podem ser observadas em luxuoso livro da
editora Assouline, “Veruschka” (pode ser comprado no site www.assouline.com),
que traz imagens incríveis da modelo clicada por nomes como Richard Avedon,
Irving Penn e Steven Meisel.
“Eu tive a sorte de viver os anos 60, quando as coisas
aconteciam, havia um sentido geral de revolução. Eu jamais poderia fazer hoje
coisas que fazia. A maquiagem e até meu cabelo, era eu quem decidia como
seriam. Hoje em dia isso não existe. Eu me diverti bastante com essas coisas”,
diz Veruschka.
Em 1972, a modelo praticamente abandonou a carreira, em
parte devido a uma briga com Grace Mirabella, então editora de moda mais
poderosa do mundo. “Ela quis influenciar meu visual, que eu tivesse um estilo
que se parecesse mais comercial, mais ligado à mulher moderna da época, no
início dos anos 70. Ela queria deixar de lado as coisas malucas que a Diana
Vreeland tinha em mente. Ela me disse, gentilmente: „Você deveria cortar os
cabelos e tentar parecer mais feliz diante da câmera‟. Eu não quis, achei
melhor parar por ali. Eu achava na época que eu deveria ter o poder sobre minha
própria imagem.”
Veruschka decidiu então trabalhar como artista plástica,
especializando-se em um estilo de fotografia da qual foi pioneira na década
anterior, baseada na transfiguração, em que se camuflava pintando o corpo com
as cores dos ambientes onde as fotos seriam tiradas, misturando-se a eles. Fez também
alguns filmes e diversas fotoperformances, muitas delas travestida de homem.
Hoje em dia, ela tem uma vida tranquila, morando sozinha
(nunca se casou nem teve filhos) em um apartamento em Berlim. Fez apenas uma
plástica – “nos olhos, nos anos 90, mas jamais farei outra” – e acompanha muito
pouco a moda por achar que nada de original é criado hoje em dia. “Nunca fui de
acompanhar a moda com muito rigor. Sempre fiz meus looks e minhas coisas, que,
no fim, acabaram virando moda. Eu fui, por exemplo, uma das primeiras a usar
minissaia – também porque eu tinha pernas muito longas, então a saia ficava
muito curta, sempre acima dos meus joelhos”, ela diz, aos risos.
“Não gosto muito da moda de hoje, de coisas como os saltos
altos demais – as modelos não conseguem mais andar direito, com medo de cair! A
moda se move em círculos: sempre tem coisas dos anos 60 e 70 inspirando as
criações. Os anos 60 foram realmente a última vez quando se criou coisas
totalmente novas para vestir. Alguma coisa também foi criada nos 70, até o fim
dos anos 80. Mas depois disso, acabou”, diz, com um certo saudosismo. Apesar de
todas as dificuldades que enfrentou, Veruschka parece ter mais lembranças boas
que ruins de seu passado.
http://elle.abril.com.br/materia/ex-modelo-alema-veruschka-fala-sobre-anos-de-ouro-na-moda-e-depressao-680175.
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