Bergman além da persona
(Por Bruno Ghetti, para o Valor Econômico - 1.mar.2013)Ingmar Bergman nas filmagens de "Persona" (1966) |
Reza a lenda que Ingmar Bergman (1918-2007) era um
cineasta obscuro, conhecido apenas em sua Suécia natal, até que os críticos de
São Paulo o "descobriram", em 1953. Na capital paulista, jornalistas
se impressionaram com as qualidades de "Noites de Circo", exibido em
uma mostra: mesmo na longínqua Escandinávia, aquele diretor falava de temas
universais - a morte, a vergonha, o medo - e exibia uma técnica cinematográfica
admirável. Só anos mais tarde, o cineasta se tornaria conhecido no resto do
mundo, virando em seguida um mito - um dos maiores do cinema.
Ou talvez não tenha sido bem assim.
"Interessante, não conhecia essa história!", diz Jan Holmberg,
diretor da Fundação Ingmar Bergman, em Estocolmo, que cuida de preservar a
memória do diretor e seu legado. "Mas seria mais justo dizer que foram os
franceses que o 'descobriram', no sentido em que distribuíram seus filmes ainda
no início dos anos 50, escreveram boas críticas e lhe deram seu primeiro prêmio
importante, em Cannes, 1955, por 'Sorrisos de uma Noite de Amor'. Mas não
duvido que o Brasil tenha descoberto Bergman por si só, independentemente
disso. Aliás, a América do Sul é de longe onde é mais apreciado",
completa.
De fato: quase seis anos depois da morte do
cineasta, sua obra ainda desperta grande interesse no público brasileiro. Uma
bem-sucedida retrospectiva de seus filmes percorreu três capitais no ano
passado. Recentemente, o documentário "Liv e Ingmar" revelou aos fãs
detalhes do romance com a atriz Liv Ullmann. E agora chega às livrarias uma nova
edição de sua autobiografia, "Lanterna Mágica" (Cosac Naify, 320
págs.).
Lançado pela primeira vez no Brasil em 1988, em
edição logo esgotada, o livro ganha agora nova tradução, de Marion Xavier. Traz
também um prefácio que reproduz artigo publicado no fim dos anos 80 no
"New York Times" escrito por Woody Allen, um dos cineastas que mais
compreenderam (e admiraram) a obra bergmaniana.
Bergman no set do filme "Gritos e Sussurros" (1972) com Ingrid Thulin, Harriet Andersson, Kari Sylwan e Liv Ullmann |
Assim que ficou adulto, Bergman fugiu de casa e foi
trabalhar no teatro. Seu talento foi logo reconhecido e não demorou até que
estreasse como cineasta, com o drama agridoce "Crise" (1946). Foi
tateando técnicas naturalistas ("Mônica e o Desejo", em 1953),
expressionistas ("Noites de Circo") e elementos oníricos
("Morangos Silvestres", de 1957) que conseguiu chegar a um estilo
muito peculiar, com um sofisticado uso de recursos como close-ups e
fades, pontuando cenas não raro passadas em ambiente fechados e protagonizadas
por (belas) mulheres. O herói bergmaniano se tornou icônico: é antes de tudo um
atormentado que forja máscaras sociais como escudos defensivos - os conflitos
com outros seres (também atormentados e mascarados) são inevitáveis, e é fácil
entender por que há tantas falas ríspidas e cruéis espalhadas por toda a sua
obra.
O livro mostra que, como seus personagens, Bergman
também buscou mecanismos para se defender e se adaptar à vida. Era ainda garoto
quando descobriu na mentira um subterfúgio. "Bergman se proclamava um
'mentiroso compulsivo e profissional', incapaz de separar ficção de realidade.
E essa falha admitida foi uma importante ferramenta para ele como
artista", afirma Holmberg. "O que não quer dizer, porém, que na
biografia não haja passagens verídicas - a maior parte provavelmente é. Mas são
filtradas por uma percepção própria. Ele nunca se furtou de dar tratamentos
dramatúrgicos a histórias. Aliás, as primeiras versões do livro, guardadas nos
arquivos da fundação, são ainda mais fictícias", conta.
Fictícias ou verdadeiras, muitas histórias do livro
são saborosas. É divertido imaginar, por exemplo, como foi o insólito encontro
entre o autor e Greta Garbo, outro grande mito sueco, diante do qual o diretor
ficou embasbacado: "Sua beleza era imortal". Mais tarde, porém,
reparar em um pequeno detalhe no rosto da diva fez que o entusiasmo cedesse
espaço à decepção: "Sua boca era feia!"
Dois ícones, dois Bergmans: Ingmar e Ingrid nas filmagens de "Sonata de Outono" (1978) |
Em narrativa não linear, Bergman expõe-se em tom
quase sempre autodepreciativo, que sugere em geral um genuíno ódio de si, mas
às vezes um certo jogo de charme (o cineasta era um incansável sedutor). Revela
também detalhes de si que muitos prefeririam ocultar, como episódios
constrangedores envolvendo problemas gastrintestinais. E não evita mostrar um
lado obscuro: tinha rompantes de ira (certa vez foi multado por agredir um
crítico que lhe era hostil) e muitas vezes desejou a morte - a de desafetos e a
própria (mas dizia amar demais a vida para pensar em se privar dela). E em um
escandaloso caso da acusação de sonegação fiscal, em 1976, livrou a própria
cara, dizendo ter só assinado papéis sem lhes dar a devida atenção.
Às vezes, Bergman parece um monstro: reconhece não
gostar do pai, ter ódio do irmão e desprezar a irmã. Mas é especialmente
desconcertante a honestidade com que assume a indiferença pelos filhos (no
livro, não fica claro sequer quantos eles foram; é possível que alguns não
tenham sido nem mencionados). Paradoxalmente, é doce ao falar da mãe e da avó,
de amigos e de mulheres por quem se apaixonou. Também dá depoimentos saudosos
de eventos ocorridos no teatro - é sobre essa arte, e não o cinema, aliás, que
ele mais discorre.
É um tanto frustrante que fale tão pouco de seus
filmes, mas aqui e ali deixa escapar pílulas. Diz, por exemplo, não gostar (e
com certa razão) de "Face a Face" (1976) e "O Ovo da
Serpente" (1977). Confessa achar "O Sétimo Selo" (1957) desigual
e, embora jamais demonstre muita exaltação, deixa entrever orgulho por
"Sorrisos de Uma Noite de Amor", "Persona" e "Gritos e
Sussurros" (de novo, tinha razão: são talvez seus três melhores filmes).
Nenhum comentário:
Postar um comentário