DUAS VIDAS
Por BRUNO GHETTI (revista online Trópico - 15.jun.2010)
Biógrafo de Godard e
Truffaut, o historiador Antoine de Baecque compara o cinema e a existência dos
dois diretores
Caroline Dim e Jean-Claude Brialy em "Une Histoire d'Eau", curta dirigido por Godard e Truffaut |
O historiador e crítico francês Antoine de Baecque (1962)
não era sequer nascido quando a França e o mundo foram tomados de assalto pelas
inovações dos jovens cineastas da Nouvelle Vague. No entanto, ele é hoje uma
das pessoas que mais estudaram, refletiram e escreveram sobre esse movimento
cinematográfico, desencadeado em 1959, com o lançamento de “Os
Incompreendidos”, de François Truffaut, e “Acossado”, de Godard.
Além de ter sido por três anos editor da revista
"Cahiers du Cinéma", celeiro dos críticos-cineastas que fariam a
revolução nouvelle-vaguiana no fim dos anos 50, De Baecque escreveu as
principais biografias de Truffaut (1932-1984) e Godard (1930). É também autor
de “La Nouvelle Vague – Portrait d’Une Jeunesse” (Retrato de uma Juventude,
1998), entre outros vários livros.
Para as duas biografias, De Baecque realizou uma meticulosa
e obsessiva pesquisa documental, fazendo inúmeras entrevistas e consultando
toda sorte de periódicos e um vasto conjunto de cartas pessoais.
Em 1996, o historiador lançou "François Truffaut - Uma
Biografia" (Ed. Record), livro co-escrito com Serge Toubiana. Há alguns
meses, publicou na França "Godard" (ed. Grasset, ainda não lançado no
Brasil), um calhamaço de quase mil páginas sobre o diretor de “O Demônio das
Onze Horas” (Pierrot Le Fou).
Entre uma e outra biografia, De Baecque escreveu o roteiro
de "Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague", documentário de Emmanuel
Laurent sobre o movimento, em cartaz em São Paulo.
“Truffaut sempre quis mostrar a sua vida para todos, no cinema,
enquanto Godard sempre fez questão de esconder a sua”, diz De Baecque na
entrevista a seguir, onde fala sobre o documentário, os diretores biografados
e, evidentemente, sobre seu tema preferido: a Nouvelle Vague.
*
Truffaut e Godard
foram cineastas e pessoas bastante diferentes entre si. O senhor vê pontos em
comum na obra e na vida de ambos?
Antoine De Baecque: Eles
fizeram filmes bem diferentes, mas acredito que suas obras se encontram em
alguns pontos. E também possuem aspectos biográficos em comum. Os dois eram
grandes amigos, se conheceram muito jovens e fizeram parte de um mesmo grupo
que frequentava os cinemas e depois escrevia sobre os filmes. Esses jovens
viviam em coletividade, criaram uma comunidade. Truffaut e Godard eram muitos
próximos.
Truffaut era uma espécie de líder do grupo, embora fosse
mais novo. Ao mesmo tempo, era muito atencioso e cuidou de associar Godard –e
também Chabrol, Rivette e outros– à sua experiência cinéfila.
Penso que o que mais os aproxima é o fato de o cinema ter
salvado a vida de ambos. Truffaut teve uma infância difícil, quase se tornou um
delinquente. O cinema permitiu que ele ocupasse a sua vida, se encontrasse, se
tornasse adulto com a ajuda dos filmes.
Para Godard, o cinema também foi uma salvação, embora ele
fosse de família mais rica. A sua escolha do cinema foi algo consciente, um ato
pensado de iconoclastia, de rompimento com sua cultura e os seus laços
familiares.
Foi uma escolha existencial. Ele elegeu uma arte considerada
menor e se dedicou ao cinema justamente por ele ser desprezado. A ambos, de
maneiras distintas, o cinema permitiu que se tornassem adultos.
Os dois começaram a filmar na mesma época e se ajudaram
muito no início da carreira. Truffaut deu dinheiro a Godard para fazer
“Acossado”. Ambos realizavam filmes bem diferentes, mas tinham muita admiração
pela obra um do outro, até meados dos anos 60.
Foi principalmente Truffaut que sempre deixou isso muito
claro. Godard também tinha uma profunda afeição e muito interesse pelos filmes
de Truffaut.
Terá sido por isso
que Godard escolheu Jean-Pierre Léaud, ator que foi praticamente criado por
Truffaut, para alguns de seus próprios filmes?
De Baecque: Sim.
Acho que a escolha de Léaud foi uma maneira de homenagear Truffaut. Godard
pegou emprestado um ator criado pelo amigo. Embora fizesse personagens bem
diferentes com cada diretor, Léaud se tornou uma espécie de ser comum ou de
criação comum de ambos.
Godard com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg nas filmagens de "Acossado" (1960) |
Em 1958, Truffaut e
Godard co-dirigiram um curta, “Une Histoire d’Eau” (Uma História da Água).
Depois, em 1959, Truffaut contribuiu com o roteiro de “Acossado”. A partir do
fim dos anos 60, eles seguiram caminhos bem distintos e chegaram a brigar. Qual
dos dois, no seu modo de ver, manteve a trajetória mais coerente?
De Baecque:
Truffaut, é inegável. Ele era um cineasta que até podia fazer um filme que
negava o anterior, mas, ao mesmo tempo, cada um deles se unia ao que o
antecedera. Juntos, todos constituem uma obra total.
O exemplo maior é a vida do personagem Antoine Doinel, que é
mostrada numa série de filmes, desde a pré-adolescência até a idade adulta,
sempre com muita coerência.
Truffaut também era muito coerente em suas declarações, na
maneira de considerar sua vida e de vivê-la.
Godard, por sua vez, é um homem da ruptura. Entre 1967 e
1968, resolveu quebrar a imagem de principal vedete do cinema francês que
exercera por toda a década de 60. Opta por se refugiar no anonimato, em sua
militância política. Faz um exílio interior –rompendo com sua vida e seu
cinema.
Também foi a partir daí que houve a ruptura entre os dois
amigos. E foi por iniciativa de Godard que o rompimento aconteceu. Ele escreveu
uma carta a Truffaut em 1973, repreendendo-o por não ter mudado com Maio de
1968 –afinal o mundo havia se transformado e, para Godard, não se poderia mais
continuar vivendo e fazendo filmes da mesma maneira. A carta gerou um forte
desentendimento, que fez os dois diretores romperem definitivamente.
Eles nunca mais se
falaram?
De Baecque: Nunca
mais. Nem se cumprimentaram. Houve até uma tentativa –oportunista, aliás-, da
parte de Godard, em 1980, quando ele pensou num livro de entrevistas com ambos.
Truffaut, porém, se recusou a participar e morreu sem voltar a falar com
Godard.
A carta que Truffaut recebeu em 1973 foi muito dura, mas ele
tratou de responder também com virulência. Em uma resposta de 20 páginas muito
violenta, atacou Godard, acusando-o de vender a imagem de um homem que combatia
grandes causas, mas era ao mesmo tempo extremamente egoísta e sempre tinha por
único objetivo se auto-valorizar.
A visão de Godard traçada por Truffaut era forte, cruel e
até caricatural, mas com alguns pontos bem justos. Estou certo de que Godard
reconheceu muitas das acusações de Truffaut. A partir dali, ficaram
estabelecidas duas maneiras muito distintas de considerar o cinema.
Na sua opinião, é
possível dizer qual dos dois foi o mais importante para o cinema?
De Baecque: Para
a história do cinema, foi Godard. Ele inventou um modo novo de fazer filmes e
foi mais influente quanto à forma. Sua influência foi enorme, em todo o mundo.
Truffaut é também muito conhecido mundo afora, até por
atingir mais intimamente o público. As pessoas se reconhecem em seu cinema
autobiográfico, são tocadas pela verdade da palavra de Truffaut e sua
generosidade. Eu diria que o cinema de Truffaut cria uma identificação mais
forte, enquanto que o cinema de Godard exerce uma influência mais poderosa.
Os estilos dos
diretores da Nouvelle Vague são bastante distintos. Há algum outro ponto em
comum entre todos eles, fora serem "autores"?
De Baecque: Esse
é o ponto que une todos os diretores da Nouvelle Vague. Eles são autores, a
direção reflete a personalidade do cineasta, mesmo que eles contem histórias
tão diferentes e de maneiras tão diversas. Eles chegam até mesmo a fazer
cinemas opostos. Entretanto, sempre se vê nos filmes a personalidade do
cineasta –eis o ponto comum aos diretores da Nouvelle Vague.
Por que Louis Malle
_relevante diretor que começou a filmar na mesma época da Nouvelle Vague_ nunca
foi incorporado oficialmente ao grupo? Teria sido por não o considerarem um
“autor”?
De Baecque: É uma
explicação. Seus filmes, de certa maneira, dão a impressão de que poderiam ter
sido feitos por outros diretores -embora alguns sejam bem pessoais.
Malle teve também um itinerário biográfico distinto, com
períodos de vida e de cinema muito contrastantes. Não é possível notar um fio
condutor em sua obra, perceber a presença, a personalidade de Malle. Ele
gostava, por exemplo, de confrontar seu cinema com o cinema americano, o
indiano, com o documentário...
Os jovens cineastas
da Nouvelle Vague idolatravam diretores americanos ou que filmavam nos EUA,
como Alfred Hitchcock. Porém, Hitchcock fazia filmes muito diferentes dos
realizados por eles: só filmava em estúdios, com estrelas famosas, sem
improvisos e com pouca liberdade de movimentos de câmera. Não é um paradoxal
esse apreço por Hitchcock?
De Baecque: Acho
que isso pode ser explicado pelo contexto dos anos 50, quando Hitchcock foi
descoberto na França. Para os jovens críticos e diretores da época, ele era um
contra-exemplo muito forte do chamado “cinéma de qualité” (cinema de
qualidade), realizado na França de então.
De certa maneira, eles consagraram Hitchcock como o primeiro
autor, como se fosse o pai daquela geração. Notaram a mão autoral de Hitchcock
na direção de seus filmes, o que foi uma percepção formidável!
A direção, a forma, eis o que conta em Hitchcock –ainda que
os personagens sejam interpretados por estrelas, que sejam filmes de estúdio.
Um olhar apenas basta para saber que se trata de um filme de Hitchcock. São
obras muito pessoais, como as de Nicholas Ray, Samuel Fuller e outros autores
americanos da época.
Os jovens franceses viram essa forma de liberdade suprema
que é a liberdade da forma. Esse apreço por Hitchcock foi um escândalo, pois,
nos anos 50, gostar de seus filmes era motivo de piada, raiva, incompreensão.
Ele não era considerado um artista, mas um “money maker” (fazedor de dinheiro).
Na verdade, penso que os jovens cineastas inventaram um
pouco Hitchcock como autor. Por vezes, o que dizem sobre ele é verdade
–percebe-se isso na tela; por vezes, parece mais uma estratégia para permitir
que se tornem eles mesmos.
Você escreveu as
biografias de Truffaut e Godard. Qual das duas vidas lhe pareceu mais
interessante?
De Baecque: O
roteiro de “Truffaut, Godard e a Nouvelle Vague” foi feito entre as duas
biografias, quando eu passava de uma personalidade para a outra, de um grupo de
arquivos para o outro.
A vida de ambos é interessante. A de Godard é mais diversa,
mais rica, pela maneira como ele fez seu cinema, pela forma como ele lidou com
a política, a sociedade, a publicidade e o amor. A vida de Truffaut foi mais
regrada, sempre muito centrada sobre seu próprio cinema.
E, além disso,
Truffaut morreu jovem...
De Baecque: Sim,
tem isso também. Ele morreu aos 52, e Godard continua vivendo quase 30 depois,
com muito mais experiências. São duas vidas apaixonantes, mas diferentes, sem a
mesma intensidade. E o mais curioso: Truffaut sempre quis mostrar a sua vida
para todos, no cinema, enquanto Godard sempre fez questão de esconder a sua.
Truffaut orienta Jean-Pierre Léaud no set de "Duas Inglesas e o Amor" (1972) |
Qual é o melhor e
qual é o pior filme de cada um deles?
De Baecque: Para
mim, o melhor filme de Truffaut é “Duas Inglesas e o Amor” (1972) e o pior é “A
História de Adèle H.” (1976). Quanto a Godard, para mim seu filme mais bonito é
“O Demônio das Onze Horas” (1965) e o pior é... (pausa). Ah sim... (risos) É “Cuide
da Sua Direita” (1987), um filme que não vale a pena ver.
O que você acha dos
filmes recentes de Godard? Viu “Film Socialisme”?
De Baecque: Sim,
vi “Film Socialisme” no Festival de Cannes. É seu ultimo filme, seu testamento.
É, às vezes, impressionante; outras vezes, é sombrio. Mas achei muito tocante.
Godard tenta fazer coisas que ele fazia antes, mas as realiza, sobretudo no
meio do filme, com uma forma cinematográfica mais lenta, mais suave, como se
quisesse parar o mundo de hoje.
O filme emociona por sua riqueza, por estar muito dentro do
mundo atual, no começo e no fim. E, de repente, no meio do filme, tudo muda. É
apaixonante, mesmo que seja pouco visto –há 20 anos os filmes de Godard
praticamente não são mais vistos.
Os três filmes dos anos 2000 dirigidos por ele ("Elogio
ao Amor, de 2001; "Nossa Música", de 2004; e "Film
Socialisme", de 2010) são bem diferentes uns dos outros. Ele volta a
colocar o risco no seu cinema. Muitas coisas sumiram –eles ficaram bem menos
engraçados que antes. Mas jamais perderam a contemporaneidade. Godard segue com
raízes nos anos 60, mas extremamente atual.
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3195,1.shl
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